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SURF

Pranchas antes das placas: relembre a época em que a praia de Boa Viagem era reduto do surfe

Número de incidentes com tubarões esvaziou a prática na orla recifense, onde, no passado, foram realizados vários campeonatos da modalidade esportiva

postado em 11/05/2018 09:43 / atualizado em 11/05/2018 09:53

Régis Galvão/Arquivo Pessoal
A nova geração de surfistas pernambucanos certamente entenderia um convite para a prática do esporte na praia de Boa Viagem como uma piada de mau gosto. Mas nem sempre foi assim. Antes do aumento repentino do número de incidentes com tubarões, as ondas da famosa praia da capital pernambucana foram palco de inúmeros torneios, marcados pela rivalidade entre surfistas de todo o Nordeste. Algumas décadas se passaram e as pranchas desapareceram da orla da Região Metropolitana do Recife (RMR), dando espaço para placas que alertam: área sujeita a ataques de tubarão.

O administrador de empresas e surfista Alexandre Gueiros, 53 anos, lembra com saudade dos encontros com os amigos em frente ao edifício Acaiaca, em Boa Viagem. Veterano na prática do surfe, Gueiros foi um dos idealizadores de um dos primeiros campeonatos no estado, o Realce Surf, que teve uma de suas etapas realizadas no Recife. “Eu surfava desde 1979 e ocasionalmente via tubarões, mas nunca foi nada de outro mundo. Não havia risco de ataques, por isso não acreditei quando noticiaram que uma pessoa havia sido mordida. Cheguei até a pensar que havia sido um caso isolado, mas logo os incidentes começaram a aumentar”, conta o administrador e surfista, referindo-se ao caso do frade Serafim de Oliveira, mordido e arrastado para o fundo do mar em 1992, em frente à Igrejinha de Piedade.

O point no Acaiaca

Ainda segundo Gueiros, o Acaiaca era o verdadeiro point do surfe no estado. “Tínhamos uma escolinha por aqui, as ondas não eram tão grandes e qualquer criança de 12 ou 13 anos poderia surfar. Sinto saudade do tempo em que nos reuníamos para conversar, tinha gente do esporte, do teatro, o clima era muito gostoso”, conta o empresário, que ainda se reúne com surfistas veteranos nas praias do Litoral Sul para relembrar os tempos que tardam a voltar.

Outro que sente falta das “ondas do Acaiaca” é o empresário Walter Coelho, 55 anos, que atualmente participa de competições nacionais na categoria de gran kahuna, dedicada aos vovôs do surfe. Coelho já teve oportunidade de surfar nas maiores ondas do país, mas sente falta de praticar o esporte em sua cidade natal. “O berço do surfe em Pernambuco foi a praia de Boa Viagem, foi onde o esporte realmente começou. Havia vários campeonatos, e eu participei de muitos. Jaboatão não fica atrás. Há um local que, acredito, possui as segundas maiores ondas do estado. Fica na curva do Sesc, em Piedade, e só perde em tamanho para as ondas de Maracaípe, em Ipojuca”, conta o empresário, que já foi campeão em várias modalidades de longboard e em campeonatos realizados no Recife décadas atrás.

Local de "nascimento" de Carlos Burle

Canal OFF/Divulgação
O “berço do surfe” no estado também foi o local das primeiras remadas de um pernambucano que anda encantando o mundo, desafiando ondas gigantes de mais de 20 metros: o surfista Carlos Burle, 50 anos, 38 dedicados ao surf. Campeão de dois Mundiais em sua categoria e com uma quebra de recorde em 2002, em Mavericks, na Califórnia, quando surfou a maior onda registrada até a época, com quase 23 metros, Burle trabalha como coach, dando instruções para outros surfistas. Mas foi nas pequenas ondas de Boa Viagem que Burle alçou voo para uma carreira reconhecida internacionalmente. “Existia sempre uma atmosfera de aventura, com menos surfistas nas águas, que eram mais limpas e seguras. Íamos para a praia, às vezes atolávamos o carro na areia e não conseguíamos voltar. Foram anos dourados, incrível ter tido a oportunidade de viver aquele momento onde não tínhamos preocupação”, relembra.

Burle teve oportunidade de surfar em ondas em todo o mundo, mas não esconde a saudade de sua cidade natal. “Na época, poucos compreendiam a nossa escolha e éramos taxados de rebeldes. Morar num local paradisíaco como o Recife daqueles anos era uma sensação muito gostosa. Nos relacionávamos com a natureza e tínhamos experiências incríveis de vida. Lembro que eu costumava tomar banho de água de coco. Hoje em dia não conseguimos fazer isso”, conta Burle.

Alexandre Gueiros/Arquivo Pessoal

Campeonatos eram comuns até anos 1990

Desde que os incidentes com tubarões começaram a ser contabilizados, há pouco mais 20 anos, foram registradas 63 vítimas na Região Metropolitana do Recife (RMR). Desses casos, 32 envolveram surfistas, um a mais que o número de banhistas. O número total de óbitos é alarmante: 24 pessoas mortas.

Não se sabe ao certo o motivo que ocasionou o acentuado número de ocorrências na RMR, mas, diante dos dados alarmantes, o Governo do Estado decidiu, através de decreto de janeiro de 1995, interditar a praia para a prática de surfe, bodyboarding e outras atividades náuticas similares em cinco municípios: Recife, Olinda, Paulista, Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho. Em maio de 2004, foi instituído o Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (CEMIT), que visa acompanhar e registrar incidentes com tubarões e fornecer dados estatísticos, além de ser responsável por estratégias e ações para minimizar os riscos com os animas na orla pernambucana.

Segundo o presidente do CEMIT, o coronel do Corpo de Bombeiros Leodilson Bastos, o relevo submarino da capital pernambucana tem características peculiares que o diferenciam do resto do mundo. “Isso faz com que animais de grande porte se aproximem bastante das praias, que são ambientes democráticos que permitem que todos se divirtam. Essa maior interação das pessoas com o mar é um dos fatores que tem aumentado o número de incidentes com tubarões”, explica o presidente.

Uma das instituições que tem contribuído para entender os incidentes com tubarão é a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Um dos pesquisadores da universidade, o professor André Afonso, concluiu o seu doutorado com um trabalho sobre o tema. Segundo ele, qualquer praia está sujeita a incidentes, mas o aumento súbito de ocorrências na RMR desde meados da década de 1990 pode ser ocasionado pela estrutura portuária de Suape. “Além disso, há outros fatores, como a poluição urbana, a elevada turbidez da água da orla costeira, além da presença de estuários e de um canal paralelo às praias, entre Pina e Piedade, que promovem a atração de espécies potencialmente agressivas para o litoral recifense, como os tubarões das espécies cabeça-chata e tigre”, explica o pesquisador

Uma das queixas de vários surfistas e banhistas da RMR é quanto à tela que serviria como barreira física contra os animais. Ainda segundo o pesquisador, esta seria uma boa ideia para devolver as pranchas à água, mas esbarra em vários obstáculos. “A UFRPE, juntamente com o Instituto Praia Segura, realizou experimentos visando desenvolver uma tela ecologicamente inócua que pudesse ser utilizada para definir uma área temporária de exclusão de tubarões e, assim, possibilitar a realização de eventos pontuais em segurança, como campeonatos de surfe. Testamos algumas configurações e identificamos o modelo de tela mais adequado para esse efeito. O projeto, entretanto, não chegou a ser implementado, pois nenhuma instituição quis assumir a responsabilidade pela instalação e manutenção do equipamento, devido ao custo acentuado e da grande responsabilidade”, lamenta o pesquisador.

Questionado sobre os ônus da iniciativa, o presidente do CEMIT explicou que a ideia já está descartada. “Toda tela desse tipo gera um impacto, que pode, por exemplo, afetar outros animais. Do ponto de vista de recursos, seria um custo muito alto para instalação e manutenção. Infelizmente, vivemos em um país em que as pessoas costumam não seguir orientações. Muitos removem as placas de advertência para fazer remos e telhados e poderiam fazer isso com as telas, causando rupturas que tornariam um local aparentemente seguro em local de risco”.

Enquanto os pesquisadores e o Poder Público tentam se entender para promover um ambiente mais seguro para surfistas e incentivar a prática do esporte no Estado, aos veteranos surfistas de Boa Viagem restaram saudade e esperança de que um dia os tradicionais encontros em frente ao Acaiaca voltem a acontecer.

Régis Galvão/Divulgação

O perigo dos ataques de tubarão

Desde que os incidentes com tubarões começaram a ser contabilizados, há pouco mais de 20 anos, foram registradas 63 vítimas na Região Metropolitana do Recife (RMR). Desses casos, 32 envolveram surfistas, um a mais que o número de banhistas. O número total de óbitos é alarmante: 24.

Não se sabe ao certo o motivo que ocasionou o acentuado número de ocorrências na RMR, mas, diante dos dados alarmantes, o Governo do Estado decidiu, através de decreto de janeiro de 1995, interditar a praia para a prática de surfe, bodyboarding e outras atividades náuticas similares em cinco municípios: Recife, Olinda, Paulista, Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho. Em maio de 2004, foi instituído o Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (CEMIT), que visa acompanhar e registrar incidentes com tubarões e fornecer dados estatísticos, além de ser responsável por estratégias e ações para minimizar os riscos com os animas na orla pernambucana.

Diario de Pernambuco
Segundo o presidente do CEMIT, o coronel do Corpo de Bombeiros Leodilson Bastos, o relevo submarino da capital pernambucana tem características peculiares que o diferenciam do resto do mundo. “Isso faz com que animais de grande porte se aproximem bastante das praias, que são ambientes democráticos que permitem que todos se divirtam. Essa maior interação das pessoas com o mar é um dos fatores que tem aumentado o número de incidentes com tubarões”, explica.

Uma das instituições que tem contribuído para entender os incidentes com tubarão é a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Um dos pesquisadores da universidade, o professor André Afonso, concluiu o seu doutorado com um trabalho sobre o tema. Segundo ele, qualquer praia está sujeita a incidentes, mas o aumento súbito de ocorrências na RMR desde meados da década de 1990 pode ser ocasionado pela estrutura portuária de Suape. “Além disso, há outros fatores, como a poluição urbana, a elevada turbidez da água da orla costeira, além da presença de estuários e de um canal paralelo às praias, entre Pina e Piedade, que promovem a atração de espécies potencialmente agressivas para o litoral recifense, como os tubarões das espécies cabeça-chata e tigre”, explica o pesquisador.

Uma das queixas de vários surfistas e banhistas da RMR é quanto à tela que serviria como barreira física contra os animais. Ainda segundo o pesquisador, esta seria uma boa ideia para devolver as pranchas à água, mas esbarra em vários obstáculos. “A UFRPE, juntamente com o Instituto Praia Segura, realizou experimentos visando desenvolver uma tela ecologicamente inócua que pudesse ser utilizada para definir uma área temporária de exclusão de tubarões e, assim, possibilitar a realização de eventos pontuais em segurança, como campeonatos de surfe. Testamos algumas configurações e identificamos o modelo de tela mais adequado para esse efeito. O projeto, entretanto, não chegou a ser implementado, pois nenhuma instituição quis assumir a responsabilidade pela instalação e manutenção do equipamento, devido ao custo acentuado e da grande responsabilidade”, lamenta o pesquisador.

Questionado sobre os ônus da iniciativa, o presidente do CEMIT explicou que a ideia já está descartada. “Toda tela desse tipo gera um impacto, que pode, por exemplo, afetar outros animais. Do ponto de vista de recursos, seria um custo muito alto para instalação e manutenção. Infelizmente, vivemos em um país em que as pessoas costumam não seguir orientações. Muitos removem as placas de advertência para fazer remos e telhados e poderiam fazer isso com as telas, causando rupturas que tornariam um local aparentemente seguro em local de risco."

Régis Galvão/Arquivo Pessoal


Enquanto os pesquisadores e o Poder Público tentam se entender para promover um ambiente mais seguro para surfistas e incentivar a prática do esporte no Estado, aos veteranos surfistas de Boa Viagem restaram saudade e esperança de que um dia os tradicionais encontros em frente ao Acaiaca voltem a acontecer.