O museu das grandes novidades da seleção brasileira neste primeiro semestre após a Copa do Mundo disputada excepcionalmente em novembro e dezembro foi a presença de Rodrigo Paiva como porta-voz da CBF nas convocações para os amistosos.
O mais icônico assessor de imprensa do futebol brasileiro, presente em quatro Mundiais e figura influente no auge da seleção que viajava o planeta pentacampeã no início do século, já havia voltado à entidade ainda antes do torneio no Catar, mas apenas nos bastidores. Agora, outra frustração mundialista depois, era o escolhido para dar as primeiras palavras de um novo ciclo, ou algo que pudesse parecer com isso.
"Ramon, então, que desafio, hein? Como é que cê tá?", disse ao microfone o jornalista que havia sido desligado da Confederação uma semana depois da derrota por 7 a 1 para a Alemanha, no Mineirão, pelas semifinais de 2014. Passada a bola para a bancada, a responsabilidade estava na mão do técnico do time sub-20, ex-jogador de sucesso e muito campeão pelo Vasco, assumindo provisoriamente a equipe principal.
Ele segue para os jogos dessa data Fifa, contra Guiné, no sábado, e Senegal, na terça, mas difícil é descobrir quando ele foi avisado disso. Em março, tal como agora em junho, não sabe até quando nem direito com que intenção deve convocar jogadores para a maior camisa que o futebol já viu.
Só não dá para dizer que foi tão surpreendido como nós pelo anúncio da lista porque precisou pegar um avião vindo da Argentina, onde disputava o Mundial Sub-20. O resto da população, quando viu, tinha um elenco cantado na TV em pleno domingo. Não se sabe também que participação terá numa próxima comissão técnica, a ser ainda contratada. Nem se deve mirar em renovação, manutenção, base ou o que for. Por que o Ramon? Alguém saberia responder?
Para essa segunda chamada, o vazio (ou o constrangimento) foi ainda maior por conta do extra-campo. Apesar do cenário envelopado com uma campanha contra o racismo por conta dos ataques sofridos por Vinicius Junior na Espanha, Ramon desembarcou no Rio de Janeiro só para anunciar a convocação. Só isso mesmo, literalmente. Mais uma vez não se falou sobre o que a CBF quer da vida. Na pergunta sobre Vini e as ações previstas diante da questão racial, quem tomou a palavra foi Ricardo Gomes, também um coordenador interino, em resposta bastante genérica, seguido por um comentário de Rodrigo Paiva. Não valeu uma palavra do treinador ocasional, menos ainda do presidente.
É um dos momentos mais insossos que a camisa amarela já viveu. Por mais que se possa debater os nomes e os rostos de dirigentes ou treinadores do passado, é difícil imaginar um momento tão à deriva, tão qualquer coisa da seleção. Porque hoje ela não encanta, não ganha e não tem a cara de ninguém. Um grande vazio de propósito, como se fardasse apenas por obrigação de agenda, já que não se tem a menor clareza sobre o que fazer com esses meses, um grande borrão entre a era Tite, terminada em dezembro, e a próxima, que começará em setembro, se é que ainda sai neste ano.
O hiato entre técnicos até faz parte do jogo. Ricardo Teixeira esperou Parreira por todo o segundo semestre de 2002, enquanto ele chegava à final do Campeonato Brasileiro com o Corinthians. Felipão decidiu sair depois do Mundial e o técnico preferido não estava disponível de imediato. Acontece. Ainda mais agora em que definitivamente a seleção não é a prioridade óbvia dos melhores profissionais no mercado, pelo contrário.
Argentina viveu algo parecido
A vizinha Argentina viveu algo parecido após a Copa da Rússia. Com a saída de Jorge Sampaoli, a federação local anunciou, em agosto de 2018, que a dupla Lionel Scaloni e Pablo Aimar, do sub-20, comandaria o time de cima nas três datas Fifa, o que já é um baita avanço em relação ao que faz Ednaldo Rodrigues, que leva o penduricalho Ramon sem muitos avisos prévios. "Vamos aproveitar o semestre para buscar um novo técnico", contou Claudio Tapia à época. Os tampões acabaram ficando de forma provisória por um ano e terminaram efetivados em julho de 2019, depois da Copa América. Bateram campeões do mundo três anos e meio depois.
Já houve também definições mais apressadas e caóticas. Em 2000, quando Luxemburgo deixou a seleção, Candinho, seu auxiliar, ficou para o jogo contra a Venezuela, em que o Brasil goleou com tranquilidade. Um mês depois havia uma partida diante da Colômbia, e o provisório, que já havia assumido o Corinthians, foi se dedicar apenas ao clube. Antônio Lopes foi contratado para ser o novo coordenador e, dias depois, sem muito tempo para especular, Leão foi anunciado como técnico, se mantendo simultaneamente no Sport que fazia bela campanha na Copa João Havelange. E mais: na estreia pelo Brasil, o ex-goleiro comandou o time das tribunas, já que estava suspenso pelo STJD por ter xingado a arbitragem num jogo do time pernambucano.
Então digamos que se a imprensa cobra escolhas sensatas e bem planejadas dos dirigentes é natural que aceite que não se fecha com um técnico de ponta da noite para o dia. A pressa, nesse caso, é inimiga da perfeição. Mas o que pega no caso da seleção brasileira é que ela não foi capaz nem de formular uma ideia, ou ao menos de firmar um interino, de ter uma comissão dedicada ao momento, de pelo menos se reunir para falar, gente, beleza, o que a gente faz até lá?
O presidente da CBF, só agora, no meio de junho, diz que o prazo para a contratação do técnico é até o fim do mês, e que vai usar esses dias para conversar com os jogadores sobre o assunto. Agora já admite, segundo informou na quarta-feira (14) o jornalista André Rizek, do Sportv, que topa esperar Carlo Ancelotti, do Real Madrid, até 2024. Fez o que desde fevereiro de 2022, quando Tite reforçou publicamente o plano de deixar a seleção? Qual a ideia esportiva para o início das eliminatórias? Quem passará o bastão do time para um técnico possivelmente estrangeiro, que nunca trabalhou no Rio de Janeiro nem jamais parou para ver uma rodada de Brasileirão?
Parece um compromisso com adiar o futuro. Não que a entidade seja sinônimo de vanguarda, pelo contrário. Muitas vezes foi exatamente a CBF que representou o que a estrutura do futebol no país tem de mais acordado com o atraso: a perpetuação nos cargos, o cabide de empregos, a falta de transparência, a corrupção sistêmica, a ausência de senso crítico. Mas não deixa de ser simbólico – e simbólico é diferente de surpreendente – que a transição seja tão ruim. Na verdade, pior impossível.
Afinal, vai ver é só a seleção brasileira, a única a frequentar todas as Copas, a única a vencê-la cinco vezes, a representante maior do impacto que uma camisa de futebol pode ter em relações em cada canto de um fim de mundo. Talvez ela não demande nenhuma palavra sobre projeto, nenhuma fala direcionada a seus seguidores sobre os próximos passos, nenhuma linha de atuação, fio condutor, nada. Nenhuma avaliação crítica sobre mais uma eliminação, nenhuma reflexão sobre como a banda tem tocado e, sendo utópico, nenhum afago ao torcedor brasileiro. E é por isso que o papel de comandante do time é muito mais que apenas tático ou técnico. É ser a cara de uma instituição desabitada, um salvador da pátria a ocupar um vácuo. E olha que Tite, ainda que tenha feito Copas do Mundo apenas razoáveis, deixou um trabalho de consistência elogiável em seis anos. Não precisava desse clima de terra arrasada.
Uma seleção passar dois encontros sem um técnico definitivo está na conta. A maior seleção de todas passar seis meses sem o mínimo de cuidado, não. Não me soa como uma grande exigência o desejo de que exista gente competente zelando pelo time, em respeito aos jogadores, inclusive, que tanto sonham em vestir a amarelinha. Diante de tamanha inércia, a gente até tenta manter a chama acesa, se esforça, mas fica difícil defender que hoje um Guiné x Brasil vale uma tarde de sábado em frente à TV.