São Januário é um território hostil e o torcedor do Vasco, certo ou errado, se orgulha disso. Historicamente o clube é forte em casa e o estádio, de fato, tem um clima pouco convidativo ao time - e, às vezes, a torcida visitante. Mas, na noite da última quinta-feira, o pós-jogo teve um ambiente pesado e violento para o próprio time, imprensa e até a própria torcida. Isso tudo com uma grande contribuição da atuação da Polícia Militar.
Desde a última semana, quando foi confirmada a permanência do técnico Maurício Barbieri, mesmo depois da derrota para o Inter, no Beira-Rio - na ocasião, a quinta seguida -, se sabia que o clima em São Januário para o jogo contra o Goiás não seria outro. Quem frequenta São Januário e conhece minimamente a torcida do Vasco sabia disso. A raiva reprimida em anos de derrotas, descaso e humilhações, uma hora se rebelaria.
Confusão começou logo depois do apito final. Clima ainda é muito tenso fora e dentro de São Januário. @SuperesportesMG pic.twitter.com/7vM0GW6A8j
— Gabriel Rodrigues (@gabrielcsr) June 23, 2023
Sem julgamentos se isso é certo ou errado, mas era claro e evidente que isso aconteceria. A imprensa que cobre o Vasco sabia, o torcedor sabia, o clube sabia e a Polícia sabia. O que aconteceu depois da goleada sofrida para o Flamengo, com a depredação da fachada de São Januário, foi um ensaio para o que se viu depois do jogo com o Goiás. Mais do que um ensaio, foi um alerta.
A torcida do Vasco, tão conhecida pelo apoio ao time mesmo em momentos difíceis, mesmo com cinco Séries B em 15 anos, cansou. Aliás, o próprio clássico com o Flamengo foi um exemplo disso. Com o 4 a 0 antes do intervalo, muitos torcedores já deixaram o estádio. A percepção foi de que os torcedores se dividiram em dois grupos: o que abandonaram e os que se revoltaram. Ainda assim, os vascaínos esgotaram os ingressos para o jogo com o Goiás. E todos sabiam o que poderia acontecer.
Esquema especial de segurança para quem?
Tanto sabiam que clube e Polícia Militar organizaram um "esquema especial de segurança", como a própria PM chamou, para a partida contra o Goiás. Mas quem conhece o trabalho da Polícia Militar do Rio de Janeiro, especialmente no trato com grandes multidões - seja em estádios ou manifestações, por exemplo - também sabia que a ação dos militares poderia piorar ainda mais a situação, que já seria ruim. E foi isso que aconteceu. A sensação de quem acompanhou a confusão, literalmente, de camarote, era que os torcedores do Vasco acenderam o fósforo e a PM, ao invés de apagar, jogou gasolina em cima.
Mais uma cena dos exageros da PM em São Januário nessa noite. Nada isenta a culpa dos torcedores, que começaram a arremessar objetos e rojões no gramado. Mas quem deveria controlar a situação não pode fazer isso. @SuperesportesMG pic.twitter.com/kIKv2ut9K5
— Gabriel Rodrigues (@gabrielcsr) June 23, 2023
E explico a parte do "camarote" e como isso é mais um exemplo das tantas coisas que estão erradas no Vasco e em São Januário. Já há alguns anos, com o estádio claramente defasado em estrutura, parte da imprensa passou a ser alocada em camarotes do estádio. Esses espaços ficam em cima da arquibancada, na "ferradura" da Colina. A distância para onde ficam os torcedores - incluindo as organizadas - é pequena. Quem quer, pode facilmente passar de um lado para o outro. E isso foi um fator determinante para o caos que foi instaurado na quinta-feira.
Vasco deixou torcedores, imprensa e adversários abandonados
Após dois sinalizadores (os famosos "piscas") arremessados no campo, muitos copos e latas, e um rojão solto ainda na arquibancada, a PM respondeu com bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta e balas de borracha. A confusão que estava concentrada e um dos lados da ferradura se espalhou por toda arquibancada, sociais, camarotes e, depois, para o lado de fora do estádio.
Enquanto parte da imprensa que estava no camarote tentava filmar a confusão, um grupo de torcedores passou a intimidar os jornalistas para que não filmassem. Com ameaças de agressões físicas e tentativa de invasão do camarote, esses vascaínos tentaram censurar o trabalho da imprensa. E, de certa forma, conseguiram. A falta de segurança no local - por falta de organização do Vasco - fez com que parte dos jornalistas saísse do camarote.
Ao mesmo tempo, torcedores que tentavam fugir do gás de pimenta conseguiram invadir um camarote ao lado. O espaço estava fechado e a porta foi quebrada para que conseguissem acessar o corredor. Nesse momento, o caos foi instaurado no local. Os torcedores que tentaram intimidar a imprensa também acessaram o espaço e passaram a "caçar" jornalistas e fizeram novas ameaças, para que não filmassem nada.
Clima continua muito tenso em São Januário. Torcedores tentaram invadir o Portão 6 e a PM respondeu com bala de borracha e bombas. Inclusive em direção às casas da Barreira. @SuperesportesMG pic.twitter.com/Oqqeeiueyd
— Gabriel Rodrigues (@gabrielcsr) June 23, 2023
Isso tudo sem nenhum sinal de reforço na segurança por parte dos funcionários do Vasco ou da PM. Alguns camarotes ao lado, dirigentes e integrantes da comissão técnica do Goiás, que também foram ameaçados, precisaram se deitar no chão para se esconderem.
O Vasco deixou os próprios torcedores (esses, há anos), imprensa e representantes do clube adversário a própria sorte. Os dirigentes do Goiás só deixaram o camarote meia-hora depois do fim do jogo, quando policiais militares chegaram no setor para fazer a escolta do grupo. Isso tudo quando o corredor dos camarotes já estava parcialmente vazio e apenas alguns poucos jornalista permaneciam no local.
O que aconteceu em São Januário neste 22 de junho, que ficará marcado, não surpreendeu ninguém. Tudo isso foi construído ao longo dos últimos anos pelo próprio clube. É claro que nada isenta de culpa os indivíduos que começaram a arremessar objetos, como copos e latas, no gramado antes mesmo do jogo acabar.
Da parte dos torcedores, isso faz parte da sensação de vale-tudo no estádio, que é ainda mais reforçado em um local pouco cuidado e com sinais de abandono. "Se ninguém cuida, por que eu vou cuidar?", deve pensar o torcedor. E, não, o torcedor que faz isso não acha que fazendo isso o time vai ganhar o próximo jogo. Pensar que o torcedor acredita nisso é ingenuidade ou desconexão com a arquibancada.
Mas, voltando ao "ambiente hostil", o Vasco conseguiu transformar um ambiente que antes era favorável ao time em uma panela de pressão. Uma hora iria explodir. E o clube fez muito pouco ou quase nada para evitar isso. E ainda deixou desprotegidos jogadores, árbitros, imprensa e, principalmente, os próprios torcedores.