“Eu tenho uma vontade de ter idade para jogar....”, se emociona Dininha, hoje com 62 anos. Há 14 anos ela sobreviveu a um AVC hemorrágico. “Eu vejo a Marta jogando, eu jogava bola demais, tanto que eu saio na rua, o pessoal até hoje lembra, porque você parou?”, conta Dininha que, em 1968, tinha 12 anos recém-completados.
A história do futebol feminino em Vespasiano durou pouco, mas o suficiente para marcar a vida de um grupo de 30 garotas que se reuniram para arrecadar fundos para uma escola. Desde então, tomaram gosto pelo esporte. “O objetivo principal foi filantrópico: ajudar a escola Padre José Senabre. O muro tinha caído, necessitava reformar e estávamos procurando o que fazer: baile, bazar e fomos fazer o futebol feminino”, conta Iolanda Maria Braga Viana, hoje com 74 anos, à época uma professora recém-formada.
A ideia foi bem aceita, mas faltava um detalhe: as jogadoras. Iolanda e uma amiga saíram pela Avenida Dr. Ari Teixeira, uma das principais da cidade, e ao final da rua já haviam anotado o nome de 30 meninas interessadas, todas entre 12 e 20 anos. Dois times e ainda reservas! Coube ao folclórico Zé Fubá, um tipo conhecido de toda a cidade, dar instruções aos dois times e apitar as partidas. Um dos uniformes foi cedido pelo Vespasiano Esporte Clube. O Independente, que tinha um campo bem estruturado, com bilheteria, cedeu o espaço. O outro uniforme foi cedido por uma oficina mecânica da cidade – por isso, o nome Oficina.
“A rivalidade era dentro de campo, depois comemorava, vibrava, mas na hora de vestir a camisa, fervia. Foi tudo na base do oba-oba. Já tinha algumas que jogavam com os irmãos, mas com técnica mesmo, eram cinco ou seis, como a Clarisse, irmã de Buião”, conta Iolanda.
João Bosco dos Santos, o Buião, é um dos filhos ilustres de Vespasiano. O atacante chegou ao Atlético entre 1964 e 1968, quando foi vendido ao Corinthians, em uma das negociações mais caras da época. Passou por outros grandes clubes do futebol brasileiro, como Flamengo, Grêmio e Athletico-PR, antes de aposentar em 1981. Em julho de 1968, coube a ele dar o pontapé inicial de um dos confrontos entre o Vespasiano e o Oficina.
“Não se falava jamais em futebol para as mulheres, havia um preconceito grande, até hoje ainda tem. Mulher jogando futebol ninguém aceitava, os pais eram muito sistemáticos. Aí montaram o time. Eu estava no Corinthians e, coincidentemente, fiquei sabendo do jogo. A Clarice e a Dora, minhas irmãs, jogaram. Infelizmente já faleceram”, lembra Buião, hoje dono de uma empresa de ônibus na cidade.
O SUCESSO E O FIM
Não demorou para que a rivalidade entre Vespasiano e Oficina chamasse a atenção. “Vespasiano tem hoje uma grande atração turística. É a única cidade do Brasil onde se pratica o futebol feminino, mesmo com a proibição da CND”, destacava o Estado de Minas de domingo, 28 de julho de 1968, lembrando do decreto do Conselho Nacional dos Desportos (CND).
“No Brasil, o CND proibiu as mulheres de jogar futebol. Agora, Vespasiano tem a primazia de ter as duas únicas equipes de futebol do país em atividade”, dizia o EM, anunciando o segundo duelo entre Vespasiano e Oficina uma semana depois do primeiro, que foi um sucesso de público. “Esse campo ficou lotado, de tanta gente. A renda foi excelente”, lembra Dininha. “O dia do jogo foi emocionante, a expectativa da hora de jogar. Os pais aceitavam bem, apesar da época”, conta Iolanda.
Chegaram os convites para jogar em Pedro Leopoldo e até um para Ribeirão Preto-SP. Mas a exposição acabou chamando a atenção das autoridades. “Foram surgindo as proibições. A gente foi chamada para ser avisada que não poderíamos continuar jogando, que era proibido o futebol para mulheres. Aí foi diminuindo...”, lembra Iolanda.
Meio século depois, elas sabem que contribuíram para a história do futebol feminino no país. “Nós ajudamos a plantar a semente. Quando vejo a Marta brilhando, eu falo: olha lá Vespasiano. A história do futebol de mulheres é muito bonita. A mulher tem direito a tudo, inclusive a se valorizar.”
LIBERAÇÃO SÓ EM 1983
O artigo 54 do decreto-Lei 3.1999, de abril de 1941, que previa a vedação da prática, por mulheres, de desportos “incompatíveis com sua natureza”, veio na esteira de times femininos que começavam a excursionar pelo país, como os cariocas Casino Realengo e Brasileiro. Em 1965, uma deliberação do CND estabelecia como práticas não permitidas às mulheres “lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball”.
Demoraram ainda longos anos até que as mulheres pudessem jogar futebol de forma competitiva no Brasil. Em 1979 houve a revogação da deliberação do CND. “A prática oficializada do futebol por mulheres ainda dependeu da deliberação publicada pelo CND, em 1983, com o estabelecimento de regras para a modalidade feminina no país”, afirma o historiador Raphael Rajão.