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'Brasil não está preparado para jogador que se declara gay', diz ex-goleiro

Comentarista e ídolo do Bahia com passagens por Grêmio, Flamengo, Juventude e Vitória se assumiu homossexual anos após fim da carreira

28/06/2023 08:30 / atualizado em 28/06/2023 00:19
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Emerson Ferretti só falou sobre sua sexualidade anos depois da sua aposentadoria como jogador
foto: Reprodução/Redes Sociais

Emerson Ferretti só falou sobre sua sexualidade anos depois da sua aposentadoria como jogador


 
"O futebol brasileiro não está preparado para um jogador que se declara gay. As portas se fecham". Essa reflexão é de Emerson Ferretti, ídolo do Bahia com passagens por Grêmio, Flamengo, Juventude e Vitória, e que desde o ano passado se tornou símbolo não só de uma carreira de superação e sucesso, como também de luta e coragem. 

O ex-goleiro falou pela primeira vez sobre sua sexualidade no podcast "Nos Armários dos Vestiários", que tratava da homofobia no esporte. Um ano depois e no Dia do Orgulho LGBTQIA+, o Superesportes entrevistou Ferretti para falar sobre a luta da comunidade para que esse ambiente seja menos hostil. 

"O esporte faz parte da sociedade, não tem como ficar tão para trás assim de uma evolução. Ainda é a modalidade mais conservadora, atrasada nesse ponto, mas acompanha, não tem jeito", ele diz. 

"Temos jogadores jovens, e essa geração mais nova já pensa diferente. Quanto mais os jovens chegarem, mais acho que o futebol vai mudar em relação a isso, percebendo com mais naturalidade. É um processo".
 

Ex-goleiro passou a vida 'se escondendo'  


Ferretti percebeu muito jovem que precisaria se proteger para sobreviver como jogador. "Eu precisei esconder isso a minha vida toda. Foram 50 anos tentando esconder. Quando falei, no ano passado, minha família já sabia, assim como meus amigos e quem convive comigo. O público, de forma geral, não tinha a confirmação. O que mudou foi poder me libertar, me mostrar completamente para não precisar esconder mais nada", conta, visivelmente aliviado. 

"Isso para quem viveu se escondendo é uma libertação. Uma liberdade tão grande. Quem não passou por isso não tem ideia. É uma leveza no dia a dia. No viver.” 

Segundo ele, o principal objetivo com a declaração era iniciar debates e tornar o assunto mais "natural". “É uma coisa que sempre teve, mas todo mundo ignora, faz de conta que não tem. É um assunto que ninguém comenta". 

A repercussão aconteceu, mas não da forma desejada. Seus ex-clubes fizeram manifestações oficiais. Grande parte dos torcedores o acolheram. Mas a história parou por aí. 

"A não ser pela manifestação do Bahia e do Grêmio, não senti por parte dos clubes, ou das pessoas que estão no futebol, uma extensão do assunto. Vieram, claro, com comentários internos. Mas o assunto morreu. Não houve algo concreto, ou uma iniciativa de abordar o assunto com atletas", relembra. 

"O que a gente percebe é que um ou outro dirigente mais progressista, mais aberto, leva isso de forma mais natural. Mas não vejo nenhuma movimentação, a não ser em datas comemorativas. Efetivamente não é um assunto que ganha relevância no futebol."
 

Feito por homens e para homens? 


Para Maurício Rodrigues, doutorando em Antropologia Social, pelo Ppgas-USP que se dedicou a estudar masculinidades e a atuação de torcedores contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro, a raiz do problema está justamente no ideal de que se trata de uma modalidade feita por e para homens.

“O esporte ainda é um ambiente muito difícil para se falar abertamente sobre sexualidade, que tem uma regulação muito forte do corpo e das expressões de gênero. E o futebol, aqui no Brasil, tem algo de símbolo da identidade nacional, e sobretudo, uma identidade nacional masculina. O ‘se fazer menino’ às vezes ainda passa pelo aprender, ser pedagogizado pelo futebol”, analisa. 

Ele aponta que, muitas vezes, a dificuldade em “sair do armário” esteja apoiada, principalmente, na ideia de que um jogador que fala sobre a sua sexualidade deixa de ser apenas um jogador. Seu desempenho em campo fica em segundo plano diante da opinião pública, mesmo que essa esteja amparada apenas em suposições, como foi o caso de Richarlysson, hoje comentarista. 

“O simples fato de ele [Richarlysson] ser questionado se sobrepunha a quem ele era como atleta. E acho que isso explica essa desconfiança dele, de perguntar ‘o que muda’. Porque a partir do momento que ele ganha maior projeção, o futebol fica em segundo plano. A questão esportiva, quem ele era enquanto profissional, como se expressava em público ou sua aparência. Isso é uma das coisas, pensando nesse futebol masculino, midiático e profissional, difíceis de mudar”.

“Talvez seja esse o fator que faça com que outros atletas de alto-rendimento se vejam constrangidos a falar mais abertamente sobre sua sexualidade. Passa por um questionamento: ‘então quem eu sou passa a ser resumido por essa questão da sexualidade’?”, completa. 
 

"Pronto, falei" 


A pergunta a que Maurício se refere foi a feita por Richarlison no mesmo podcast onde Ferretti falou. "Hoje eu resolvi falar. Sou bissexual. Se era isso que faltava, ok. Pronto. Agora eu quero ver se realmente vai melhorar, porque esse é o meu questionamento", ele disse, pela primeira falando abertamente sobre o assunto que o perseguiu durante toda a carreira”, disse ele. 

Assim como a declaração de Ferretti, ela foi bem recebida. Onã Rudá, ativista da causa LGBTQIA+ nas arquibancadas e torcedor do Bahia, vê essas falas como parte de um movimento maior. 

“É um recorte, cumpriu um papel, mas é parte de algo que já vinha acontecendo de forma gradativa”, afirma ele, que também sente falta de um posicionamento mais incisivo dos clubes nesse aspecto. 

“Acho até que em relação aos clubes a gente poderia ter um avanço maior. No que tange a protocolos, tratativas que dizem respeito a iniciativas na estrutura do futebol, a gente tem tido muitos avanços. E isso é conduzido pela CBF, que é a entidade máxima do futebol”. 

É preciso lembrar, porém, que tanto Ferretti quanto Richarlisson são ex-atletas que estão longe do foco dos holofotes, ainda que continuem transitando no meio. No Brasil, não há nenhum jogador nas séries A, B, C ou D que seja declaradamente homossexual. E, por hora, não há expectativa que essa realidade mude, na avaliação de Ferretti, que torce por uma ruptura. 

“Acho que ainda vai demorar um pouco, o futebol brasileiro não está preparado para um jogador que se declara gay. As portas se fecham. Mas é questão de tempo. Isso vai acontecer em algum momento. Eu só falei porque sou um ex-atleta. Na ativa, eu não teria falado. Com certeza minha carreira seria prejudicada. Eu teria que pensar no meu sustento, na minha sobrevivência. Não falaria”, pondera. 

“Acredito que ainda, no futebol de alto nível dos clubes maiores, ainda não está preparado e nem vai acontecer em um curto espaço de tempo, um ou dois anos. Vai demorar um pouquinho mais. E já existem muitos dentro do futebol, mas… abrir a boca e falar é um passo adiante, e eu não sei como as pessoas vão reagir a esse momento.”


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