Quem, como o repórter que vos escreve, nasceu nos ora longínquos anos 1980, lembra-se de, basicamente, três pessoas negras na televisão: o Mussum e dois meninos que saíam de dentro da panela, cantando “levanta, Maria, acorda, Manoel”. Passados mais de 30 anos, essa realidade pouco mudou. A televisão brasileira, uma das poucas opções de entretenimento de massa para várias gerações, por isso, celeiro de “referências” para a criançada, ainda é um “mar branco”, como afirmou recentemente o narrador Júlio de Oliveira, do Sportv, referindo-se às redações do jornalismo esportivo.
Além de Júlio, há apenas outros quatro negros com aparições constantes no canal. Na ESPN Brasil, são sete. E na Fox Sports, dois.
Sem diploma, sem trabalho
O jornalismo esportivo nada mais é do que uma amostra da realidade brasileira, em que negros raramente ocupam espaços de destaque, cargos de chefia e postos de comando, seja nas grandes empresas, no serviço público ou nos altos escalões da política e da Justiça.
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Desde 2009, após decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou inconstitucional o art. 4º, inciso V, do Decreto-Lei nº 972/1969, o exercício profissional do Jornalismo no Brasil pode ser realizado mesmo que a pessoa não tenha graduação acadêmica. Entretanto, os grandes veículos de comunicação raramente contratam para seus quadros pessoas que não têm diploma superior.
Portanto, poderia se dizer que o baixo quórum de negros no meio jornalístico tem relação com a já conhecida dificuldade de acesso ao ensino superior. Contudo, esta não é a única causa.
Segundo o IBGE, o termo “negro” abrange pessoas “pretas” e “pardas”. Apesar de o Brasil ser um país de maioria negra – 50,74% segundo o último censo, sendo 7,61% pretos e 43,13% pardos – essa parcela da população não é representada em setores sensíveis da sociedade.
No ensino superior, por exemplo, os negros são apenas 32,64%, segundo o Censo do Ensino Superior de 2018, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Portanto, analisando os números do acesso de negros às faculdades e universidades, pode-se afirmar que sua presença diminuta no ensino superior é uma das causas de haver poucas pessoas negras também em postos de destaque no mercado profissional – situação que se verifica também no meio jornalístico, sobretudo o televisivo. Mas não é a única.
Outras causas além do diploma
O preconceito e a discriminação racial são chagas presentes na sociedade brasileira, em diversos segmentos da sociedade. Costumeiramente, o negro é associado – de maneira automática – a atividades negativas e até criminosas.
Segundo a jornalista Sara Raquel Pinheiro Portal, na obra A Cor da Mídia Televisiva, de 2016, o eurocentrismo (ter a Europa como referência cultural e social) é evidenciado em programas televisivos jornalísticos ou não, e isso se reflete na mudança de comportamento de crianças, jovens e adultos. Para a autora, as principais emissoras de TV detêm de forma intencional o padrão europeu de jornalistas para a apresentação de telejornais, por exemplo, que se baseiam em cor, traços físicos e textura dos cabelos. É o que chamamos de embranquecimento midiático.
A realidade é a mesma nos setores governamentais. Dos 513 deputados eleitos em 2018, apenas 125 (24,3%) se declaram negros.
Nas empresas, o quadro se repete. De acordo com estudo denominado Perfil Social, Racial e de Gêneros das 500 Maiores Empresas do Brasil e suas Ações Afirmativas - elaborado pelo Instituto Ethos em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento - o total de negros nos postos de comando no setor privado é o seguinte:
Conselho de Administração: 4,9%
Quadro Executivo: 4,7%
Gerência: 6,3%
Supervisão: 25,9%
Mas como definir quem é negro?
Os dois últimos censos realizados pelo IBGE (2000 e 2010) trouxeram quatro classificações étnicas, nesta ordem: branca, preta, amarela, parda e indígena.
O órgão utiliza duas metodologias diferentes para identificação étnica das pessoas. Um deles é a da autodeclaração, método por meio do qual o próprio sujeito da classificação escolhe o grupo do qual se considera membro. O segundo é a heteroclassificação quando a atribuição de uma categoria étnico-racial a alguém, escolhida por outra pessoa.
Em registros administrativos, como certidões de nascimento ou de óbito, a cor do indivíduo é sempre definida por heteroatribuição, em razão da óbvia impossibilidade de se entrevistar a pessoa que está sendo classificada.
No recenseamento do IBGE, embora a instrução seja para colher a informação sem intervir ou influenciar a escolha do entrevistado, a utilização do método da autoidentificação nem sempre é possível. Isto porque nem sempre todas as pessoas do domicílio são entrevistadas. Algumas podem não estar na residência no momento da visita do recenseador, ou não podem responder por falta de capacidade, como crianças e pessoas com deficiência.
Nesta matéria, diante da impossibilidade de se entrevistar todos os jornalistas objeto da análise, a categorização será realizada pelo método da heteroatribuição, tomando por base o fenótipo (característica aparente ou observável de um indivíduo, determinada pela interação de sua herança genética) dos profissionais.
Televisão preta e branca
Para limitar o objeto da reportagem, serão analisados os jornalistas que ocupam posições de destaque. Isto é, aqueles que apresentam e conduzem programas jornalísticos, bem como os que compõem suas bancadas permanentes.
No último dia 12, Júlio de Oliveira, único narrador negro do Sportv, deu um depoimento contundente sobre a falta de espaço dos negros no jornalismo esportivo.
“É uma coisa que incomoda, porque você vê brancos discutindo temas de negros, exatamente pela falta de representatividade do número de negros participando. A gente olha para a nossa redação aqui atrás e é um mar branco. Só que a gente trata de um segmento, que é o esporte, que a essência é negra. No futebol, o grande é o negro. No basquete, os maiores da história, negros. No tênis de elite feminino, negras. Nós acabamos de ter um negro em outro esporte de elite, hexacampeão mundial no automobilismo. Só que para discutir esporte, são brancos. Está errada a participação na essência que vem da base. É estrutural, é de sociedade, é um pouco do Estado. Mas nós aqui, como formadores de opinião, precisamos ser um pouco mais agentes de transformação”, afirmou o jornalista.
Para corroborar as afirmações de Júlio, estavam ao seu lado na bancada outros três jornalistas – todos brancos.
No Sportv, canal esportivo do Grupo Globo, entre todos os apresentadores e comentaristas, há e apenas 1 preto (o ex-jogador de futebol Grafite). Na reportagem do canal, Débora Gares e Diego “San” Moraes são os únicos representantes.
Na Fox Sports, apenas Abel Neto e Karine Alves ocupam posição de destaque.
Um levantamento realizado em junho deste ano, mostrou que a disparidade também está presente na ESPN Brasil. Na emissora os números são os seguintes:
7 Pardos: 2 apresentadores (Felipe Félix e Marcela Rafael); 5 comentaristas (Alex, Breiller Pires, Carlos Alberto de Simone, Osvaldo Maraucci e Ricardo Bulgarelli)
Por questão de conveniência, oportunidade e autocrítica, tratamos de analisar também a redação jornalística do portal Superesportes e da editoria de esportes do jornal Estado de Minas.
Teoricamente, aqui não haveria motivos para observar padrões estéticos que regem os veículos televisivos – por razões óbvias, pelo fato de os jornalistas terem pouquíssima exposição de seus rostos.
Porém, o desenho étnico-racial dos profissionais da redação segue a regra dos demais veículos analisados no presente trabalho.
Ao todo, são 19 profissionais na redação, responsáveis pelas versões impressa e on-line do Superesportes, e a divisão se dá da seguinte maneira:
2 editores (brancos);
2 subeditores (1 branco e 1 parda);
12 repórteres (9 brancos, 2 pardos e 1 negro)
1 infografista (branca);
2 estagiários (brancos) O único preto da editoria é o que vos escreve.