O 24 parece ser um número proibido para os jogadores do futebol brasileiro. Atlético e Cruzeiro, entre outros grandes clubes nacionais, divulgaram a numeração dos atletas para a temporada, sendo possível notar uma grande coincidência: o algarismo não figura na camisa de nenhum atleta.
A explicação para essa recusa passa pelo heterossexismo, opressão das pessoas lésbicas, gays, bissexuais ou que se identificam de outras formas com relação à sexualidade, baseada num conjunto de crenças que assume que a heterossexualidade é a única forma de sexualidade 'natural'. No Brasil, o 24 está ligado ao animal veado no jogo do bicho, criado há cerca de 120 anos pelo barão João Batista Viana Drummond para estimular a visitação ao Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. Associado a séries numéricas, o jogo caiu no gosto popular e se espalhou pelo país. Mesmo sendo contravenção pela legislação penal brasileira, sua prática jamais foi abolida.
No Brasil, o veado acabou sendo relacionado a um animal delicado e saltitante, a imagem do Bambi, dos desenhos de Walt Disney. Na linguagem popular, os termos viado e veado são associados ao homossexual masculino. Essa história ajuda a entender o principal motivo de o 24 não ter grande adesão no futebol brasileiro.
Em outros países, o cervo, animal da mesma família do veado – Cervidae -, representa a virilidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, ele é o símbolo de uma marca de roupas originalmente masculinas, a Abercrombie.
Uso do 24 seria 'afronta' ao heterossexismo
Para Gustavo Andrada Bandeira, doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador em futebol e masculinidade, usar a camisa 24 seria uma espécie de afrontaao heterossexismo que reina no mundo do futebol. Os jogadores buscam se afastar de tudo que questiona esse status quo para evitar qualquer desgaste com torcedores, avalia o especialista.
“Isso [a ausência do número 24] reflete as representações hegemônicas de masculinidade do futebol. Uma representatividade heterossexual e heterossexista. Ter característica heterossexual, ser forte, viril e aparecer com mulheres na mídia são qualidades para os jogadores do futebol em um ambiente em que a masculinidade tem se mostrado frágil. E qualquer deslocamento desta hegemonia causa ruídos, qualquer coisa que tente evitar essa hegemonia parece que será evitada pelos jogadores. Beira o ridículo você não querer usar o 24 e ver jogadores usando o número 88, identificado com movimentos nazifascistas”, analisa.
Bandeira frisa que existe uma construção da masculinidade nos estádios de futebol. Torcidas separam os heterossexuais, “os machos”, dos homossexuais, “bichas e putos”, considerados inferiores. Usar a camisa 24 poderia vender uma imagem de fragilidade, tendo em vista esse olhar heterossexista. “A homossexualidade no futebol está sempre presente, está sempre no outro. Você nunca vê uma torcida gritando nós somos os machões, é sempre vocês são os viados, para demarcar quem ocupa o lugar do normal e quem é o anormal”, diz. Vale frisar que, no futebol brasileiro, ambiente hostil aos LGBT+, não há casos de jogadores que se assumiram homossexuais.
Regra sul-americana impõe exceção
Em torneios sul-americanos como a Copa Libertadores, o uso do número 24 é obrigatório, pois a relação enviada pelos clubes deve ser sequencial de 1 a 30. Alguns clubes acabam colocando o terceiro goleiro como 24. Talvez uma tentativa de evitar que o número entre em campo. Foi o caso do Cruzeiro na temporada passada. O clube inscreveu o goleiro Lucas França com a camisa. Com a saída do arqueiro, outro goleiro ficou com a 24: Vitor Eudes. Nenhum dos dois foi utilizado por Mano Menezes. Não apenas o Cruzeiro se valeu disso: o Grêmio inscreveu Paulo Victor; o Flamengo, Thiago; o Santos, João Paulo; o Vasco, João Pedro. Dessa forma, a camisa virou o número dos terceiros goleiros na Libertadores. Apenas Palmeiras e Corinthians não colocaram arqueiros com a 24.
Usado apenas em função da regra, o número 24, se adotado de forma voluntária, poderia gerar, em casos mais extremos, reações negativas de parte dos torcedores, acredita Bandeira. “Se sou empresário do jogador, digo para não usar a camisa 24. Eu, como militante dos direitos humanos e como torcedor, gostaria que jogadores homossexuais se assumissem ou então que atletas heterossexuais defendessem essa bandeira. Mas hoje você tem pouco mais de 600 jogadores na Série A ganhando grandes salários. Se você aconselha um jogador a se assumir ou defender abertamente, as chances de ele ter prejuízo na carreira são enormes. Acho que apenas os jogadores extraclasse não teriam esse problema, no Brasil talvez apenas o Neymar”, avalia o estudioso.
A explicação dos clubes
A reportagem entrou em contato com empresários de jogadores para abordar o tema. Apenas um deles, que inclusive é ex-jogador, quis falar sob anonimato. Disse que não notava a falta do número 24 nas camisas dos atletas. “Nunca tinha reparado nisso. Agora que você falou vou começar a reparar”, despistou. “Eu não vejo problema, mas a gente sabe que tem torcedor que pega no pé do jogador por tudo, pelo cabelo, pela chuteira... Número então pode ser só mais um motivo”.
Por meio de suas assessorias, Atlético e Cruzeiro informaram que a escolha dos números das camisas cabe aos jogadores. O departamento de comunicação do Galo lembrou que a camisa 5, muito usual no futebol, não tem dono nesta temporada pois ninguém se interessou pelo número. Na Toca da Raposa, a explicação é de que os atletas carregam alguns números durante a carreira e preferem seguir com as mesmas camisas. Além da dupla da capital mineira, outros grandes, como Corinthians, Palmeiras, Internacional e Flamengo, já divulgaram a numeração de 2019 sem a camisa 24.
Preconceito antigo
O Superesportes também encontrou dificuldade em abordar o tema com alguns jogadores de futebol. Algumas assessorias preferiram nem sequer contatar os atletas. O zagueiro Murilo, do Cruzeiro, não vê o tema como tabu: “Não acho que tenha um preconceito. Tem jogadores que preferem número de datas de aniversário, do ano, acho que é mais por ai”, disse. “No meu caso, sempre usei mais a numeração de zagueiro mesmo, a 3, a 4, a 14. Gosto também da 27 e da 35, são meus números preferidos. Mas não tenho preconceito nenhum. Se tivesse que usar o número 24, usaria sem problemas”, assegurou.
Mas, de forma geral, a recusa ao 24 é antiga no futebol brasileiro. Procópio Cardoso, ex-jogador de Atlético, Cruzeiro, São Paulo, Fluminense e Seleção Brasileira, relembra os números que eram evitados. "Os jogadores não usavam 13 e 24. O 13 era porque tinha uma ligação com o azar, embora o Zagallo tenha ficado famoso com o 13. O 24 era por causa da associação com gays", diz. "Até acho que não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas os jogadores não usavam. Nem eu usei. Usava o 3, o 5, que eram os números de defensores. Mas se você olhar para outros esporte no mundo todo, há muita gente que usa o número 24”.
Procópio tem razão. Uma das grandes lendas do basquete, o ex-jogador Kobe Bryant usava o número. Ele começou a carreira com o 8. Em 2006, contudo, mudou para 24, camisa aposentada pelo Los Angeles Lakers em sua homenagem. Com o número às costas, ele foi eleito o melhor jogador da NBA, o MVP, na temporada 2007/08.
Apenas um detalhe no basquete
No basquete brasileiro, alguns atletas carregam o número de Kobe. No Novo Basquete Brasil (NBB), quatro atletas escolheram a camisa: o ala/pivô Douglas Nunes, do São José; o armador Lassance, do Basquete Cearense; o ala Laster, do Joinville; e o ala/pivô Paranhos, do Minas. No vôlei, a numeração segue a ordem cronológica. Assim, os jogadores não carregam números grandes.
No futebol internacional, o preconceito ao 24 não faz sentido, tendo em vista a explicação ligada ao jogo do bicho no Brasil. O número é usado, na maioria das vezes, por reservas dos grandes clubes. No Barcelona, o zagueiro Vermalen enverga a camisa; no Real Madrid, o meia Caballos; no Chelsea, o defensor Gary Cahill; no Liverpool, o atacante Rhian Brewster.
Craque histórico do Barcelona, Iniesta iniciou a carreira usando a camisa 24.