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Cruzeiro celebra 80 anos de mudança histórica em meio a nova metamorfose

Em 7 de outubro de 1942, o Conselho Deliberativo celeste votou a mudança, de Palestra para Cruzeiro; Raposa atravessa, agora, nova transformação

07/10/2022 05:00 / atualizado em 07/10/2022 10:32
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Cruzeiro já em 1946 com novo uniforme, escudo e cores
foto: Arquivo / Estado de Minas / DA PRESS

Cruzeiro já em 1946 com novo uniforme, escudo e cores



Dos grandes clubes brasileiros, talvez o Cruzeiro seja o que tenha vivido transformações mais profundas durante sua história. Uma das mais significativas ocorreu há exatos 80 anos, em 7 de outubro de 1942: o antigo Palestra mudou de nome, cor, escudo e 'espírito'. 

O legado italiano, ainda vivo e presente no clube, somou-se a contornos ainda maiores de brasilidade em função da 2ª Guerra Mundial. O nome Cruzeiro, por exemplo, foi escolhido por ser um dos símbolos máximos da República brasileira. Hoje, a Raposa passa por nova transformação, que pretende ser tão exitosa quanto a do passado.

Fundado por italianos que vieram participar da construção da nova capital mineira, Belo Horizonte, no início do século XX, o Palestra Itália surgiu em 1921, mas trocou a denominação em 1942. 

Em 31 de agosto daquele ano, o então presidente brasileiro Getúlio Vargas publicou decreto em que declarava guerra contra o Eixo (Itália, Alemanha e Japão).

Muitas medidas foram tomadas para reduzir a influência de italianos, alemães e japoneses no país, como lembra o historiador Rodrigo Caldeira Bagni de Moura, do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG).

"A mudança de nome dos Palestras de São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba aconteceu em decorrência das medidas nacionalizantes adotadas pelo governo Getúlio Vargas, depois da entrada do Brasil na 2ª Guerra", lembra.



Naquele momento, o governo via o esporte como um dos grandes símbolos pátrios. Em função disso, proibiu manifestação de caráter nacional estrangeiro em encontros esportivos, afetando diretamente os Palestras.

"O Conselho Nacional de Desportos, que foi regulamentado em abril de 1941 e era vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, decretou que as associações esportivas – clubes ou outras agremiações – só poderiam ser administradas e presididas por brasileiros natos ou naturalizados. O conselho abria exceção apenas a estrangeiros radicados no Brasil há mais de 20 anos. O CND apontava a importância cívica das associações esportivas no decreto-lei n.3.199", destaca Moura.

O decreto citado pelo professor proibiu a presença de muitos estrangeiros nos times. "Nas exibições desportivas públicas de profissionais, nenhum quadro nacional poderá figurar com mais de um jogador estrangeiro", lê-se no artigo 32, que, no parágrafo único, estabeleceu, em casos especiais, até o máximo de três não brasileiros.

Ipiranga ou Cruzeiro?


No fim de setembro de 1942, a diretoria do Palestra Mineiro, que já havia abandonado o primeiro nome, Società Sportiva Palestra Italia, se reuniu em Belo Horizonte para deliberar sobre nova alteração na denominação por causa da guerra. A ideia era homenagear o Brasil, que tão bem recebeu os italianos. 

O primeiro nome sugerido foi Ipiranga, riacho que ficou célebre no processo de independência do Brasil. Sob a chefia de Ciro Proni, a Sociedade Esportiva Palestra Mineiro trocaria o nome para Esporte Clube Ipiranga.

Os jornais de época chegaram a noticiar a novidade. "O Palestra mudou de nome. Adotada ontem a denominação de Esporte Clube Ipiranga para o tricolor da capital". Contudo, o nome não havia sido aprovado pelo Conselho Deliberativo.

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"Em momento nenhum o Cruzeiro oficializou outro nome. Foram Palestra Itália, Palestra Mineiro e Cruzeiro. O nome Ipiranga não foi oficializado em momento nenhum. Foi o presidente do Cruzeiro que unilateralmente resolve que seria esse nome. Ele dá uma entrevista, e saiu no jornal a mudança, mas não houve votação do Conselho. O Cruzeiro nunca oficialmente se chamou Ipiranga. O clube se chamou Ipiranga na cabeça de um presidente por uma semana, mas foi rechaçado pelo Conselho", afirma Gustavo Nolasco, diretor do documentário "Em busca da história do Cruzeiro" e colunista do jornal Estado de Minas.

Em 4 de outubro, os jornais noticiaram a vitória do Atlético sobre o Ipiranga, por 2 a 1. O nome extraoficial ganhou as páginas das publicações mineiras. Com a vitória, o Galo sagrou-se campeão estadual daquele ano.

Três dias depois da derrota no clássico, o Conselho reprovou a troca, deflagrando desentendimento entre as lideranças. O presidente Ciro Proni renunciou e uma nova junta assumiu (João Fantoni, Wilson Saliba e Mário Tornelli).

O novo nome escolhido foi Cruzeiro, símbolo presente na bandeira nacional.

Mudança para o nome Ipiranga não foi aprovada
foto: Reprodução

Mudança para o nome Ipiranga não foi aprovada



Outras mudanças ocorreram posteriormente, como as trocas das cores, do escudo e do uniforme. O branco, o vermelho e o verde, da Itália, foram alterados pelo azul, outra referência italiana por causa da camisa da seleção de futebol, embora a justificativa oficial fosse a cor da bandeira brasileira ao fundo das cinco estrelas.


Violência contra italianos

De acordo com Anísio Ciscotto, conselheiro do Cruzeiro e diretor da Câmara de Comércio Ítalo-brasileira, havia uma política para tentar abalar a reputação de italianos por causa da guerra.

"A coisa não foi tão simples, havia mesmo antes da guerra um movimento grande para 'nacionalizar' os clubes de origem estrangeira. Havia um movimento político de pessoas que queriam crescer, se destacar e não tinham ascendência italiana. Uma maneira de crescer no clube era diminuindo o prestígio dos italianos, e essa foi uma oportunidade, muita gente se aproveitou disso", disse.

Ciscotto afirma que foi um período difícil para os italianos em Belo Horizonte. "Houve episódios em que queimaram a bandeira da Itália, quebraram janelas de casas de italianos, brigas em escolas por esse motivo. Várias famílias italianas saíram do Cruzeiro por causa disso. Hoje, ainda luto pela manutenção das histórias e origens do clube e, infelizmente, muita gente me ofende nas redes sociais, não respeita esse trabalho", explica.  

Jogo entre América e Cruzeiro; último uniforme do Palestra, em 1941
foto: Arquivo / Estado de Minas / DA PRESS

Jogo entre América e Cruzeiro; último uniforme do Palestra, em 1941



Gustavo Nolasco, que estudou profundamente a história do clube, disse que o estádio do Palestra, no Barro Preto, em BH, sofreu ameaça de ser incendiado.

"Houve uma agressividade muito grande no Brasil inteiro. Os italianos já eram integrados à sociedade e não tinham nada a ver com a guerra. O Palestra, em 1942, já era um time de massa, não apenas de imigrantes. Já havia conquistado títulos, enchia o estádio com muitos operários do Barro Preto. E acabou sofrendo pela ligação que tinha. Havia muito medo de violência contra o clube, inclusive tentaram colocar fogo no estádio do Barro Preto. Era um clima de medo e de paixão pelo clube, porque havia a opção de acabar com o clube, e isso não passou pela cabeça de ninguém."

Então com três anos em 1942, Gilda Fantoni acompanhou a família nesse período. As lembranças, embora pouco numerosas, ainda estão vivas na memória da filha de Ninão (João Fantoni), um dos primeiros ídolos da história do Palestra e dirigente do clube naquele momento.

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"Nessa época, eu era muito criancinha. Eu me lembro que as duas famílias estavam participando: a Fantoni, por parte do meu pai, e a Lodi, por parte da minha mãe. Lembro muito de papai contando sobre a mudança do nome. Ele teve grande influência no momento da escolha da nova denominação", disse.

Apesar do clima tenso para os italianos no Brasil, Gilda recorda que não houve ataques à sua casa em Belo Horizonte. "A nossa família não foi perseguida por causa da guerra, nunca ouvi essa conversa na família. O que havia era uma zoação da torcida do Atlético. A gente morava no caminho do campo do Sete de Setembro e, quando o Atlético jogava lá, muita gente passava na porta da casa do papai para poder tirar sarro", lembra. Hoje, ela mora em Goiânia com a família, mas segue o Cruzeiro de longe.

Nova transformação


Após a mudança, o Cruzeiro conquistou o tricampeonato estadual (1943 a 1945). Nos anos seguintes, enfrentou enormes dificuldades. A década de 1960 representou o crescimento do clube, que ganhou novo status nacional ao bater o Santos de Pelé na final da Taça Brasil de 1966 – que posteriormente foi reconhecida pela CBF como Campeonato Brasileiro.

Nos anos 1970, o time celeste se tornou um dos grandes clubes no cenário mundial.

Tostão fez parte do time que surpreendeu o mundo ao vencer o Santos de Pelé na final da Taça Brasil de 1966
foto: O Cruzeiro/EM/D.A Press - 7/12/66

Tostão fez parte do time que surpreendeu o mundo ao vencer o Santos de Pelé na final da Taça Brasil de 1966



Hoje, a Raposa é a maior campeã da Copa do Brasil, com seis conquistas (1993, 1996, 2000, 2003, 2017 e 2018), além de quatro títulos brasileiros (1966 , 2003, 2013 e 2014) e dois da Copa Libertadores (1976 e 1997). A coleção de troféus ainda conta com outros tantos canecos internacionais e regionais.

Depois de 80 anos, o clube celeste vive nova transformação em 2022. O Cruzeiro foi o pioneiro na mudança de regime jurídico e administrativo, passando o controle da gestão esportiva da associação para uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF).

Ex-jogador do clube e ídolo do futebol mundial, Ronaldo Fenômeno comprou 90% das ações da SAF celeste. Ele prometeu investir no futebol e pagar as dívidas fiscais, além dos débitos com outros clubes. A associação já protocolou pedido de recuperação judicial.

Na próxima temporada, o Cruzeiro voltará à Série A. Embora a empolgação predomine em grande parte da torcida, ainda há uma parcela de cruzeirenses preocupada com o futuro do clube.

Anísio Ciscotto mostra confiança: "O sucesso virá mais rápido do que no passado. Foi na década de 1960 que o Cruzeiro cresceu nacionalmente. Nos próximos anos o Cruzeiro pode voltar a ser o time forte que sempre foi. O Cruzeiro é o time do povo, que nasceu da vontade da comunidade italiana. E quem salvou o Cruzeiro foi a mesma comunidade, a sua torcida, que tirou Wagner Pires de Sá (ex-presidente do clube) e Itair Machado (ex-vice de futebol), encheu o estádio novamente, recebeu o Ronaldo de uma forma que ele talvez nunca tenha sido recebido, fazendo uma redoma ao redor dele. O Cruzeiro é sua torcida".

Ronaldo comprou 90% das ações da SAF do Cruzeiro
foto: Cruzeiro/Divulgação

Ronaldo comprou 90% das ações da SAF do Cruzeiro



Por outro lado, Gustavo Nolasco vê divergências entre a transformação de 1942 e a vivida neste ano pelo clube.

"A primeira mudança foi feita por torcedores do Cruzeiro que não queriam que o clube acabasse. A SAF agora é um grande negócio. O Cruzeiro foi comprado como qualquer outro clube, tem o simbolismo de Ronaldo ter jogado no Cruzeiro, mas não tem amor nisso. O Ronaldo não comprou o Cruzeiro porque ama o clube. Mas a gente tem que ser eternamente grato e exaltar o trabalho. Ainda bem que foi o Ronaldo e não um fundo inglês ou árabe. O Ronaldo tem o nome dele, se o negócio der errado, o nome dele vai para a lama", disse.

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