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Gestão de economista Wagner Pires arruinou finanças e mergulhou Cruzeiro na Série B

Presidente e seus dois vices renunciaram aos mandatos nessa sexta-feira

Rafael Arruda
Wagner Pires de Sá, o 'presidente raiz', deixa o Cruzeiro atolado em dívidas e na Série B - Foto: Vinnicius Silva/Cruzeiro
Economista graduado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e sócio de uma empresa especializada em fabricar produtos químicos, Wagner Pires de Sá, de 78 anos, assumiu a presidência do Cruzeiro em janeiro de 2018 com a promessa de reorganizar as contas do clube. “Vamos fazer uma engenharia financeira”, costumava dizer. Na prática, ocorreu o contrário. A dívida de R$ 383 milhões, herdada da gestão de Gilvan de Pinho Tavares, deverá saltar para R$ 700 milhões. O crescimento de 83% no passivo é extraoficial, já que o balanço patrimonial do exercício de 2019 só será divulgado em abril de 2020.



Ao oficializar a saída, Wagner Pires deixa o Cruzeiro atolado em dívidas em curto prazo. São três meses de salários atrasados, além de seis meses em direitos de imagem e outras verbas trabalhistas. Jogadores como Thiago Neves e Fabrício Bruno já acionaram a Justiça solicitando as rescisões de seus contratos. Existem, também, pendências com bancos e a própria Receita Federal. E não há, por ora, previsão de receitas em futuro próximo, já que foram feitos adiantamentos de cotas de televisão e patrocinadores. Esportivamente, o time terminou o Campeonato Brasileiro em 17º lugar, com 36 pontos, e disputará a Série B em 2020.

Na carta de renúncia, o agora ex-presidente ressaltou “conquistas, êxitos e transparência” de seu mandato, além de reiterar a herança de débitos de gestões anteriores. Em momento algum houve reconhecimento de erros (leia abaixo):

“Durante o nosso mandato, muitas foram as conquistas e êxitos, tanto no campo desportivo quanto em relação ao saneamento das finanças do clube. Citamos os significativos progressos na esfera da regularização tributária e contábil, as quais tiveram um aumento considerável da dívida nas gestões anteriores.

Saliento que lutamos e trabalhamos com muito esforço, afinco e transparência, contra um processo incessante de tentativas de descrédito da nossa gestão junto a torcida, o que temos certeza, será devidamente esclarecido através do melhor de todos os juízes: a história. Esta sim será nossa grande aliada, e nela depositamos toda nossa confiança para que sejamos julgados de forma justa no momento adequado. Neste mesmo rumo, certamente a justiça demonstrará a inexistência de qualquer ato ilicito na minha gestão.



Podemos citar ainda como exemplo, as constantes penhoras nas contas correntes do clube relativamente a dívidas de gestões anteriores, as quais vêm inviabilizando até mesmo o pagamento da folha salarial, dentre outras despesas correntes.

Finalmente, considerando a difícil situação financeira do Cruzeiro Esporte Clube e a intenção em dar sustentação financeira à entidade, manifestada por diversos Conselheiros e Empresários Cruzeirenses, resolvo renunciar ao cargo de Presidente do Cruzeiro Esporte Clube, em caráter irretratável e irrevogável.

Sem mais para o momento.

Wagner Antônio Pires de Sá”.

A partir das saídas de Wagner e seus dois vices - Hermínio Lemos e Ronaldo Granata -, o presidente do Conselho Deliberativo, José Dalai Rocha, assumirá a presidência do Cruzeiro interinamente até a realização de nova eleição, em maio. O período de transição terá a participação de um Conselho de Notáveis, formado por Pedro Lourenço (dono do Supermercados BH), Emílio Brandi (dono da distribuidora de alimentos Nova Safra), Alexandre de Souza Faria (dono da Multiseg, corretora de seguros), Carlos Ferreira Rocha (sócio do frigorífico Uberaba), Jarbas Matias dos Reis (diretor regional da Galvão Engenharia S/A), Walter Cardinali Júnior (advogado) e Saulo Tomaz Froes (dono da Lokamig, locadora de veículos).



Uso da máquina


Eleito em outubro de 2017 ao vencer a eleição contra Sérgio Santos Rodrigues, Wagner gerou descontentamento em dois de seus principais apoiadores - o ex-presidente Gilvan de Pinho Tavares e o ex-dirigente Bruno Vicintin - ao nomear Itair Machado como vice-presidente de futebol e Sérgio Nonato para a função de diretor-geral.

Por outro lado, o presidente se fortaleceu junto ao Conselho Deliberativo, pois o grupo ‘Família União’ se tornou maioria. Muitos apoiadores dessa corrente ganharam cargos diretivos com remunerações polpudas nas Tocas da Raposa I e II, na sede administrativa e nos clubes sociais do Barro Preto e da Pampulha. Destaques para Alexandre Comoretto, o Gaúcho, e Vitório Galinari.

No primeiro ano da gestão de Wagner Pires, o Cruzeiro venceu, com o elenco montado por Gilvan, o Campeonato Mineiro e a Copa do Brasil - faturando premiação recorde de R$ 61,9 milhões pela segunda conquista. Em 2019, ganhou o bi consecutivo do estadual, novamente em cima do rival Atlético, e fez boa campanha na fase de grupos da Copa Libertadores - líder isolado do Grupo B, com 15 pontos. Em várias ocasiões, o presidente protagonizou cenas excêntricas, chegando, inclusive, a mergulhar em uma banheira de água fria durante os festejos da Copa do Brasil de 2018. Entre um porre e outro, ele mesmo se definia como ‘presidente-raiz’.

Wagner Pires de Sá superou Sérgio Rodrigues e foi eleito presidente do Cruzeiro com 235 votos a 200 - Foto: Ramon Lisboa/EM D.A Press

Manobra contábil


O mar de rosas da ‘Era Wagner’ começou a se transformar em coroa de espinhos na polêmica saída de Arrascaeta para o Flamengo, na qual Itair Machado disparou críticas contra o jogador e o seu empresário. Apesar de ter negociado o uruguaio em janeiro, o Cruzeiro considerou como receita de 2018 a primeira parcela da transferência, de R$ 29 milhões.

Ao fazer a manobra contábil, o clube apresentou um déficit de R$ 27 milhões, inferior a 10% da arrecadação de R$ 339 milhões em 2018. O percentual era uma exigência para se encaixar no Programa de Modernização da Gestão de Responsabilidade Fiscal de Futebol Brasileiro, o Profut, que assegura o parcelamento de dívidas fiscais.

Já com a situação financeira definhando, o Cruzeiro tentou a captação de um empréstimo de R$ 300 milhões
 junto a um fundo internacional, cujo nome nunca foi divulgado, com juros anuais de 9% - inferior aos das instituições brasileiras. O Conselho Deliberativo aprovou a operação, que não foi adiante, de acordo com Wagner Pires, por causa das notícias dos episódios de corrupção.



Cruzeiro inseriu no balanço de 2018 a venda de Arrascaeta, que aconteceu de fato em 2019 - Foto: Leandro Couri/EM D.A Press

Denúncias e investigações


A contabilidade criativa na negociação de Arrascaeta foi o indício de irregularidades no Cruzeiro. Que se intensificaram em 26 de maio, com a denúncia do programa Fantástico, da TV Globo, sobre investigação da Polícia Civil contra a diretoria por suspeitas de lavagem de dinheiro, falsificação de documentos e falsidade ideológica, além de possíveis quebras de regra da CBF, da Fifa e do Governo Federal.

O fato mais grave era sobre um empréstimo de R$ 2 milhões contraído com o empresário Cristiano Richard dos Santos Machado, sócio de firmas que atuam na locação de veículos e de equipamentos de proteção. Para abater o débito, o clube, segundo inquérito da Polícia Civil, incluiu parte dos direitos de jogadores do profissional, como David (20%), Raniel (5%), Murilo (7%), Cacá (20%), e de outros que passaram pela base e foram negociados, casos de Gabriel Brazão (20%) e Vitinho (20%). Além disso, o Cruzeiro inseriu participação em uma possível venda do promissor Estevão William, de apenas 12 anos, que, pelas leis trabalhistas, só poderá assinar vínculo laboral a partir dos 16.

A Polícia Civil ainda apura superfaturamento de serviços, notas frias, comissões abusivas para empresários de atletas, aumentos substanciais nos salários de dirigentes, entre os quais Itair Machado, de R$ 180 mil mensais (multa rescisória de R$ 2 milhões), e Sérgio Nonato, de R$ 125 mil mensais (multa rescisória de R$ 1 milhão). Integrantes de outras pastas também tinham remunerações consideradas acima do mercado. Outras possíveis irregularidades investigadas pela Polícia Civil foram apontadas na contratação de conselheiros para a prestação de serviços e o pagamento a torcidas organizadas.


Itair Machado foi um dos dirigentes investigados pela Polícia Civil - Foto: Tulio Santos/EM D.A Press

Episódio da 'primeira-dama'


Esposa de Wagner Pires de Sá, a advogada Fernanda São José se tornou nacionalmente conhecida pelo episódio de invasão à sala do Conselho Deliberativo, à época presidido por Zezé Perrella, para retirar documentos. No dia 19 de junho, ela brigou com a secretária do órgão, Hellen Caroline Carvalhais Rocha, abriu gavetas, vasculhou arquivos sem autorização e tentou lhe tomar o aparelho celular com o intuito de descobrir se havia algum tipo de gravação. Em seguida, recusou-se a assinar a carta de demissão da funcionária, porém assegurou que a dispensa havia sido motivada por “ordem da presidência do clube”. A acalorada discussão foi acompanhada de perto pelo diretor da sede campestre Alexandre da Rocha Comoretto, o Gaúcho. Vídeos da sede administrativa do Cruzeiro registraram o ocorrido e mostraram a forte influência da mulher de Wagner no ambiente.

Fernanda São José é esposa de Wagner Pires de Sá, presidente do Cruzeiro - Foto: Igor Sales/Cruzeiro E.C

Reflexos no campo


O caos político e administrativo refletiu no futebol. Depois de ser eliminado para River Plate, nas oitavas de final da Copa Libertadores, e Internacional, pela semifinal da Copa do Brasil, o Cruzeiro fez campanha muito ruim no Campeonato Brasileiro - a pior de sua história na era dos pontos corridos - e caiu para a Série B em 17º lugar, com 36 pontos em 38 rodadas. No jogo do rebaixamento - derrota para o Palmeiras no dia 8 de dezembro, por 2 a 0, no Mineirão -,houve quebradeira e pancadaria no Mineirão.

A falta de planejamento ao longo da competição acelerou o rebaixamento inédito à segunda divisão. Substituto de Mano Menezes, Rogério Ceni durou apenas oito jogos como técnico, enquanto Abel Braga, que entrou no lugar do ex-goleiro, contabilizou 14 partidas. Adilson Batista não conseguiu cumprir a missão de ‘salvador da pátria’ nas três rodadas finais. Enquanto a torcida se frustrava com tropeços contra adversários praticamente rebaixados, Wagner Pires de Sá se esquivava de entrevistas e evitava a imprensa.

Embora já saiba que a queda à Série B impactará bruscamente em seus recebíveis, o Cruzeiro nem sequer discutiu o seu orçamento para o próximo ano. Não há previsão de receitas e gastos. O Conselho Gestor terá de correr contra o tempo para tomar ciência do quadro financeiro, organizar a casa e dar suporte para o departamento de futebol.


Cruzeiro perdeu para o Palmeiras por 2 a 0 e foi rebaixado à Série B - Foto: Alexandre Guzanshe/EM D.A Press

Pressão da torcida nas ruas


Inicialmente, Wagner Pires hesitou em abrir mão da presidência. Em entrevista ao Superesportes, ressaltou que “só renuncia quem é covarde”, chamou os “torcedores de internet” de “robôs criados” e garantiu que as redes sociais não representavam o sentimento de quase dez milhões de pessoas. Os cruzeirenses, então, mobilizaram-se para exigir a saída do presidente por meio de protestos na porta da sede, em frente às residências de diretores e nos grupos de WhatsApp. E conselheiros de oposição formalizaram pedidos de afastamento.

Paralelamente, Zezé Perrella teve opiniões divergentes a respeito de Pires de Sá. Enquanto presidente do Conselho Deliberativo, chamou-o de ‘Rainha da Inglaterra’, já que Itair Machado e Sérgio Nonato eram quem, de fato, davam ordens no clube. No início de outubro, a dupla saiu do Cruzeiro, e Zezé foi nomeado gestor de futebol. O discurso logo mudou, com Wagner sendo poupado de críticas e até eximido de responsabilidade pelo descalabro financeiro. Porém, ao ser destituído da gestão de futebol, em dezembro, Perrella tornou a disparar contra Wagner e acusou Itair e Serginho de interferência em sua saída.

Torcedores protestaram em frente à sede administrativa e exigiram a saída de Wagner Pires - Foto: Leandro Couri/EM D.A Press

Mudanças no futebol


Antes das renúncias de Wagner Pires e seus vices, o Cruzeiro renovou o contrato do técnico Adilson Batista até dezembro de 2020, mantendo ainda o auxiliar Cyro Garcia e o preparador físico José Mário Campeiz. A negociação foi conduzida pelo vice-presidente de futebol Márcio Rodrigues, nomeado em 12 de dezembro para a função, e pelo diretor de futebol Marcelo Djian.



Agora, com José Dalai Rocha na presidência e a entrada em cena de um grupo de conselheiros para auxiliar na administração, a tendência é de mudanças drásticas em vários departamentos e também no futebol. Em entrevista ao Superesportes, o empresário Pedro Lourenço, dono do Supermercados BH, adiantou que manterá o técnico Adilson Batista, mas promoverá uma “limpa” para enxugar a folha. O nome cotado para assumir a gestão do futebol é de Alexandre Mattos.