Aos 46 anos, Paulo Bento acaba de assinar com o Cruzeiro um dos melhores contratos de sua carreira, na ordem de R$ 400 mil mensais. Mas até chegar a esse patamar econômico, o treinador português deu duro. Na adolescência, Bento foi balconista e serviu refeições no restaurante dos pais, em Lisboa.
O jornalista José Manuel Freitas, amigo de Paulo Bento, conta que o trabalho começou cedo na vida do novo treinador cruzeirense. “Inicialmente, ele ajudava a servir refeições nas férias escolares, quando tinha 14, 15 anos. O restaurante se chamava Flor de Alvalade. O restaurante ficava no bairro de Alvalade, um dos mais caros da cidade. Ele ainda existe, mas não está mais ligado à família. O pai de Paulo morreu há cerca de 15 anos”, conta.
Em entrevista ao canal português SIC, em 2012, Bento relembrou esse período em sua vida. ”Não tive luxo, meus pais sempre foram pessoas humildes, pessoas trabalhadoras, mas permitiram sempre que não me faltasse nada”.
Ao fazer 17 anos, Paulo Bento decidiu abandonar os estudos para se dedicar exclusivamente ao trabalho no restaurante. Àquela altura, tornar-se jogador profissional ainda era uma realidade distante. “Decidi deixar de estudar e decidi não enganar meus pais ao dizer que não queria continuar a estudar e não faria outra coisa que não fosse ajudá-los (no restaurante). Naquela época já tinha idade suficiente para perceber as coisas que eles tinham feito por mim e eu não tinha feito tudo que estava ao meu alcance em termos escolares. Entendi que a minha obrigação era ajudá-los naquilo que eles trabalhavam durante tantos e tantos anos”, relembrou, na reportagem à emissora lusitana.
Por sorte, Paulo Bento vingou como atleta profissional no fim dos anos 1980 no modesto Oriental e, posteriormente, no poderoso Benfica. Volante vigoroso, ele ainda passou por Estrela Amadora, Vitória de Guimarães, Real Oviedo da Espanha e, por fim, Sporting.
O treinador lembrou que, não fosse o futebol, poderia ter se dado muito mal pelo afastamento prematuro dos estudos. “Acho que foi um erro que cometi, corri um risco enorme e aí tive uma sorte enorme também, a oportunidade, aos 20 anos, de me tornar profissional. Foi um risco porque não tomei as devidas precauções nesse aspecto em particular”.
Paulo Bento sempre foi bastante ligado à família. A forma como foi criado explica muito o seu comportamento atual no futebol, bastante austero e disciplinado. “Meus pais eram pessoas que eu tinha relação muito forte, relação muito próxima. Mesmo no momento em que saí de casa, a relação de proximidade continuou. Depois de sair para Guimarães, não passava um dia sem falar com meus pais. Minha mãe era mais equilibrada, mas meu pai era uma pessoa mais próxima, com apoio muito grande, mas também por aquilo que eu era na sua vida, pelo rigor que tinha no trabalho, pela seriedade que mostrava no trabalho, e por isso me marcou muito”.
Quando Paulo Bento encerrou a carreira de jogador, em 2004, no Sporting, sua entrevista coletiva foi marcada por muitas lágrimas pela ausência do pai, falecido havia pouco tempo. “Não posso deixar recordar aquele que foi, é e será sempre o meu maior ídolo, que infelizmente não pode estar aqui para ouvir o meu agradecimento, mas onde quer que esteja, sabe quantas saudades eu tenho dele”, discursou Paulo.
À SIC, em 2012, Paulo Bento explicou aquele momento de emoção. “Foi uma carreira de 15 anos, um sonho que sempre tive e ali terminava essa carreira, o sonho de criança tinha se realizado, e aquilo acabava naquele momento. Foi uma mistura de muitos sentimentos e faltava uma pessoa que me marcava muito”.
Na próxima segunda-feira, Paulo Bento desembarcará em Belo Horizonte com a esposa, Teresa. Ela o acompanhará nos 20 meses em que viverá no Brasil. As filhas Sofia e Marta seguirão o trabalho no Cruzeiro de longe. A primeira mora nos Estados Unidos e a segunda na Inglaterra.
Com o treinador, chegarão quatro profissionais para integrar a sua comissão técnica. O adjunto será Sérgio Costa. O ex-treinador de goleiros do Sporting e da Seleção Portuguesa, Ricardo Peres, é cotado para ser auxiliar. Já a função de scouting deve ficar sob a responsabilidade de José Carneiro. Paulo Bento ainda trará um preparador físico.
A seguir, alguns trechos da entrevista de Paulo Bento à SIC, em 2012:
Lazer
Gosto de fazer uns jogos com meus amigos também, umas peladas de vez em quando. Gosto de dormir, de comer bem, gosto de vinho tinto. Sou um bom garfo. Gosto dos pratos típicos portugueses, um cozido, feijoada, cabrito, sou realmente um bom garfo.
Carreira de treinador
Acima de tudo, gosto do convívio com os jogadores. É a parte mais importante de ser treinador, torcer por eles, conviver com eles, ajudá-los a melhorar e ver uma transmissão de ideias em um jogo. Antes de serem jogadores, eles são homens, seres humanos e deve haver uma transmissão de valores para trabalharmos e criarmos um grupo. Um treinador vive da transmissão de conhecimento e da liderança, são os dois pilares de um treinador.
Vai da personalidade, do caráter de cada um estar num meio como esse, mas é um meio que gosto muito, mas pode ser melhor se houver mais sinceridade, mais frontalidade, mais honestidade, acho que o futebol pode ser melhor.
O trabalho do treinador tem muito a ver com o que é feito durante a semana. Tem menos a ver do que se faz durante o jogo. É evidente que durante o jogo você tem opções, faz as substituições, mas o momento em que o treinador pode e deve chegar aos jogadores é no intervalo do jogo. São cinco ou seis minutos em que se pode falar.
Vaias em estádios de futebol
Muitas vezes as pessoas se revoltam contra os treinadores, vaiam as suas decisões, contestam as suas opções, pelo que faz, pelo que não faz. Mas não é ao treinador que as pessoas causam um dano maior, é aos jogadores, porque são eles que vão escutar, tomar decisões, e eles é que vão estar sob maior pressão, não é o treinador. Eu não deixo de fazer uma substituição, ou não deixo de tomar uma decisão porque sou vaiado. Não é uma situação que me inibe de tomar qualquer decisão. O que eu tenho na minha cabeça eu faço, independentemente do que as pessoas possam pensar ou dizer.
Quem é melhor? Treinador teórico ou prático?
Me parece completamente desajustada, sem sentido nenhum, essa comparação. Há quem venha pela parte teórica, da faculdade, e quem vem do futebol, ou seja, quem foi jogador. O fato de ter sido jogador, bom ou mal jogador, não lhe dá a vantagem de ser um bom treinador. Não faz sentido nenhum. Tem a ver com a competência, o interesse das pessoas. Mas o fato de ter atuado lá dentro pode, em algum momento, ajudar a imaginar o que o jogador está pensando. Por ter sido jogador, você pode antecipar o pensamento do jogador diante de alguma questão, em determinado cenário.
O futebol exige postura diferente?
Em alguns casos. Há momentos em nossa atividade, nesse caso o futebol, que estamos de uma forma diferente do que realmente somos. Estar num banco de suplentes, orientando um jogo é diferente de estar no núcleo de amigos. Estar numa entrevista coletiva é diferente também. Não significa dizer que, em alguns momentos, numa entrevista, que não se possa ter momentos de diversão. É preciso ponderar bem o que deve ser a nossa postura. Pode-se rir. Há perguntas que se leva a muita polêmica. A própria concentração, a preparação que nós levamos, não nos deixam ser aquilo que realmente somos enquanto seres humanos. Um treinador, em alguns momentos, deve ser um pouco ator também, mas sem perder o que é fundamental: suas idéias, seus princípios.
Ser pai
Olhamos para a vida de forma diferente. É a principal razão para trabalharmos, lutarmos, no fundo tudo é pelo futuro nos nossos filhos, e isso é algo que me motiva. Minhas filhas têm orgulho de mim, têm uma relação extraordinária. Temos as nossas brigas, as nossas discussões, como todo pai tem, por várias coisas. Há sempre alguns temas. Com a mais velha, por sua independência. Mas temos sempre algumas preocupações que nos levam a ter algumas divergências, mas perfeitamente normais.
Quando pedir desculpas
Sou orgulhoso, reconheço que sou orgulho, mas o orgulho não me tolhe o pensamento, não me tolhe as ideias. A dose que tenho de orgulho tenho também de humildade para reconhecer quando estou errado. Posso não fazer no momento, mas mais tarde acabo de reconhecer o erro.
Repúdio
Não gosto de pessoas falsas, de pessoas manipuladoras.