Em agosto de 1987, o Grêmio fez uma excursão à Suíça. Os quatro atletas foram presos no Hotel Metropolitano, em Berna, por terem abusado de Sandra Pfäffli, que tinha ido com amigos ao quarto dos jogadores para pedir uma camisa do clube gaúcho. Eles ficaram presos durante quase 30 dias e voltaram ao Brasil ao fim da fase de instrução do processo, ainda em 87. Em 1989, Cuca, Henrique e Eduardo foram condenados a 15 meses de prisão e multa de 8 mil dólares cada um. Fernando foi penalizado por ter sido cúmplice com três meses de prisão e multa de quatro mil dólares. Nenhum deles foi ao julgamento - o Grêmio enviou o advogado do clube - nem cumpriu a pena, já que o Brasil não extradita seus cidadãos.
Com centenas de pessoas no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, os jogadores do Grêmio foram recebidos como vítimas do episódio de violência na Suíça. A imprensa ajudou a construir essa narrativa. No jornal Correio do Povo de 29 de agosto de 1987, o colunista Wianey Carlet ironizou o caso de violência. "Violência? Claro que não. Ficou ainda mais claro, pelo menos para mim, que não houve violência no ap. 204 do hotel Metrópole. Pode-se questionar, isto sim, o bom gosto dos envolvidos... Mas cores e sabores não se discute, resta dar as boas vindas aos nossos doces devassos". Já no Zero Hora do dia 8 de agosto de 1987, Paulo Santana disse que foi "travessura irresponsável" dos atletas. "Os jogadores do Grêmio não assimilaram a mudança do fuso horário. Levaram um choque de costumes… Agora é só torcer - no que acredito - que a Justiça suíça faça justiça. Isso é, que ela realmente encare o fato como foi uma travessura irresponsável e de total imprevidência dos autores quanto a sua ilicitude e consequência". Ambos os colunistas morreram em 2017.
Ana Carolina Vimieiro, pesquisadora de ativismo no esporte e questões de gênero da UFMG, afirma que grande parte da cobertura jornalistica daquele episódio tentou culpar a vítima. "É muito importante, fundamental mesmo, sobretudo se olharmos para a forma como esses casos foram originalmente tratados pela mídia. O caso do Cuca, em particular, expressava o que a sociedade pensava e ainda pensa, em menor grau hoje, mas ainda pensa, sobre casos de estupro: que a culpa é da vítima. Quando olhamos para o material noticiado à época, vemos claramente que os jogadores foram transformados em vítimas do sistema prisional da Suíça e que a vítima, uma menina de 13 anos chamada Sandra Pfäffli, teve sua moral questionada, de forma a legitimar a noção de que ela tinha culpa por ser violentada", disse.
O jornal feminista Mulherio foi um dos poucos a não endossar esse viés. Na época, noticiou o caso de forma crítica, mas não houve grande repercussão. Nos últimos dias, uma republicação do periódico viralizou nas redes sociais: "Henrique, Fernando, Eduardo e Alexi (Cuca), quatro jogadores do Grêmio acusados do estupro de uma menina de 13 anos na Suíça, foram transformados pela imprensa gaúcha em 'heróis', graças a uma serie de deturpações dos fatos e do culto ao machismo", diz um trecho (Clique aqui para ler na íntegra).
"O papel do jornalismo lá atrás foi de reproduzir essas narrativas, com exceção de veículos da mídia alternativa, como o Mulherio. E, no caso do Cuca, vemos todo o machismo daquele período aflorar nas narrativas locais de quem cobriu o caso. Todos homens, é claro", destacou Ana Carolina Vimieiro.
O que mudou no jornalismo?
Apesar de fazer as ressalvas de que o jornalismo esportivo mantém foco maior apenas nos jogos e é feito majoritariamente por homens, Vimiero entende que a mídia passou a refletir sobre a violência contra minorias e a representatividade na própria imprensa. Ela cita uma matéria publicada recentemente pelo Superesportes mostrando a presença de poucos negros na mídia e a apuração da Globo no estupro cometido pelo atacante Robinho, condenado em segunda instância pela Justiça Italiana.
"Destaco o trabalho reflexivo de vários veículos de mídia do Brasil recentemente. E aí está também a importância de resgatarmos esses casos. Tanto o comentário sobre racismo no esporte do narrador Júlio Oliveira, que disse que as redações são mares brancos, e a matéria de Humberto Martins, no Superesportes, sobre a ausência de negros na imprensa, quanto o trabalho de apuração da Globo no caso Robinho e a reportagem do Esporte Espetacular sobre casos de estupro envolvendo técnicos e jogadores de futebol são frutos de uma reflexão do próprio jornalismo esportivo sobre si mesmo. Isso é importantíssimo para mudarmos a forma como as coisas são feitas. Então, não me surpreende que a cobertura do caso da década de 1980 tenha sido como foi, mas vejo recentemente movimentos reflexivos importantes no jornalismo esportivo. Só assim vamos caminhar em outra direção", frisou.
"Mas ainda temos muitas razões para repensarmos o jornalismo esportivo. As pesquisas demonstram que ele é pouquíssimo diverso. Dados do International Sports Press Survey (ISPS) de 2011, uma pesquisa global sobre jornalismo esportivo, indicam que grande parte da cobertura é focada nos atletas (mais de 50%), sendo que, desses, 85% são homens. O jornalismo esportivo também ouve poucas fontes (alarmantes 26% das notícias não ouvem nenhuma e 41%, uma) e as que ouve são predominantemente internas ao campo esportivo (atletas e treinadores). Elas também são majoritariamente masculinas. Na imprensa (mas não há qualquer razão para pensar que é diferente em outras mídias), 92% das matérias são assinadas por homens. Por fim, quase 80% das notícias se resumem ao pré e pós jogo".
Já o professor Carlos Alberto Carvalho, da Comunicação Social da UFMG, explica que o jornalismo entendeu que não é aceitável tentar silenciar as mulheres vítimas de violências e ressaltou que é preciso um compromisso ético das redações em busca de uma cobertura mais extensiva no combate aos diversos tipos de opressões.
"Denunciar todas as formas de violências físicas e simbólicas contra as mulheres, vindas de quaisquer homens, em quaisquer atividades, deve ser parte do compromisso ético da imprensa rumo a uma sociedade livre das violências de gênero. Quando estamos diante de casos que envolvem pessoas públicas, como jogadores e treinadores de futebol, o compromisso ético é ainda maior, pois são indivíduos que atuam em atividades de grande visibilidade e a impunidade é um péssimo indicador de que as violências seriam aceitáveis. Infelizmente, a imprensa esportiva somente há muito pouco tempo percebeu que não é mais possível silenciar as mulheres vítimas de violências por parte de atletas, treinadores, dirigentes e outros homens ligados ao mundo dos esportes. Que as denúncias sejam, doravante, trazidas a público, em coberturas equilibradas, eticamente qualificadas", ressaltou.
O que mudou na sociedade?
Em 1987, a sociedade brasileira tinha acabado de sair da ditadura militar, que durou de abril de 1964 a março de 1985. Naquele momento, a nova constituição democrática ainda não tinha sido instituída. Ela foi um marco aos direitos dos cidadãos brasileiros, por garantir liberdades civis e os deveres do Estado, como explica a professora de antropologia Érica Renata de Souza, da UFMG.
"Naquela época, os movimentos sociais estavam começando a ganhar força e fôlego no Brasil. Então, toda essa discussão que está muito mais amadurecida hoje sobre os direitos humanos e os direitos das mulheres com o feminismo não era uma realidade no Brasil dos anos 1980. Por isso, naquele momento, nada aconteceu. E os anos 1980 foram um escândalo no Brasil em muitos sentidos, em termos de direitos das crianças, das mulheres e dos idosos, a gente não tinha nenhum tipo de respaldo, que ocorreu com a Constituição de 1988. Antes dela, realmente a gente tinha situações escandalosas no Brasil a respeito de violência contra populações vulneráveis".
Érica de Souza ressalta que é importante rememorar casos como esse envolvendo o ex-jogador e hoje técnico Cuca para mostrar que episódios assim não serão mais tolerados na sociedade que queremos construir. "Acho importante, sim, resgatar esses casos, porque a gente não tinha naquela época um debate crítico a respeito. Isso não significa, então, que o caso tenha que morrer. Ele tem que ser resgatado, ser problematizado para ilustrar e para mostrar que casos assim não serão mais tolerados. Que a forma com a qual a sociedade vê hoje o direito da mulher é muito diferente do que via nos anos oitenta. Resgatar esses casos são importantes pela memória, para a gente mostrar que as coisas mudaram. O que era 'permitido' ou o que não era devidamente punido antigamente ocorria porque não se tinha esse debate na sociedade. E hoje, com esse debate, não é mais tolerado".
A luta feminista é o principal motivo para o debate da violência contra a mulher prosperar na sociedade. Nasceu nas redes sociais uma campanha contra o retorno do técnico Cuca ao Atlético com o lema #CucaNão. Em grande número, as atleticanas conseguiram colocar este assunto como um dos mais comentados no Twitter nas últimas semanas.
A doutoranda em ciência política pela UFMG Luciana Andrade explica essa ação nas redes. "Os movimentos feministas e de mulheres estão cada dia mais online, atuando de forma interligada e conectada. Está cada dia mais fácil ter acesso ao histórico das pessoas públicas e a documentos judiciais, inclusive de outros países. É um debate sobre o abuso sexual de mulheres, no caso do Cuca ainda com o agravante de (a vítima) ser menor de idade e configurar também pedofilia, que nunca sai do cenário público. O que ocorre é o foco maior em determinadas situações ou problemas, especialmente nos tempos em que estamos vivendo, com ataques constantes aos direitos humanos das mulheres, inclusive um ataque institucional em que as mulheres estão sistematicamente perdendo acesso a políticas públicas de gênero no nível federal".
A ampliação deste debate, contudo, não diminuiu consideravelmente os índices de feminicídio no Brasil. Nos primeiros seis meses de 2020, 1.890 mulheres foram mortas de forma violenta em plena pandemia do novo coronavírus. Em todo o ano de 2019, houve 3.739 feminicídios. Naquele ano, o goleiro Bruno, condenado pelo homicídio de Elisa Samudio em 2010, deixou a prisão e virou alvo de clubes e fãs. De acordo com a professora Érica de Souza, esse é um exemplo de como a vida da mulher tem pouco valor na sociedade.
"Se esses debates não são feitos, se esses casos não vêm à tona com essas figuras públicas, a gente ajuda a naturalizar a violência. Ela já está naturalizada, o feminicídio já está naturalizado, é estrutural na nossa sociedade, que ainda é patriarcal, machista, racista, transfóbica. Então, se a gente naturaliza esse tipo de situação, a gente reforça todo o preconceito, todo o estereótipo, como aconteceu com caso da Elisa Samudio. Tem gente ainda hoje tirando selfie com o goleiro Bruno como se ele fosse um astro ainda, sendo que ele é um feminicida, ele matou uma mulher. Há fãs que ignoram esse fato e ficam se exibindo nas redes sociais com ele. Então, essa é uma naturalização muito perversa da violência. Significa que a vida daquela mulher não vale nada para aquela pessoa que está tirando foto com o goleiro Bruno, vale muito mais a vida do goleiro e aquela projeção daquela pessoa ao lado dele do que a vida daquela mulher, que foi tirada de forma tão violenta", observou Érica de Souza.
A imagem que o Atlético passa
E qual a imagem que o Atlético passa para a sociedade ao contratar o técnico Cuca? O Superesportes fez a mesma pergunta para as três mulheres ouvidas nesta reportagem. As respostas foram as seguintes:
"O clube passa uma imagem de que não se afeta com relação à situação da violência contra as mulheres e meninas. Nos passa a imagem de que não há nenhuma forma de accountability (prestação de contas) de gênero e de direitos humanos internamente no clube – caso jogadores, técnicos ou funcionários sejam violentos e agressores, mesmo condenados, poderão continuar atuando em suas funções normalmente já que esta não é uma questão que impacta ao clube. Infelizmente, a imagem que o Atlético passa e acaba reproduzindo é de também ser mais um elo de violência contra as mulheres. Se você não enfrenta a violência, se você não enfrenta o agressor, você acaba sendo conivente, reproduzindo a situação. Imagino que as torcedoras do clube ao saber que Cuca iria ser o técnico do time se sentiram violentadas. É preciso lembrar que uma grande parcela das mulheres brasileiras já foram violentadas efetivamente. Colocar um estuprador, condenado, como técnico do clube, reforça a aceitação do problema e a impunidade como tônica desta situação. Além disso, pode passar a imagem de que a culpa é da mulher", explicou Luciana Andrade.
"Passa a imagem de que crimes de violência contra a mulher são coisas menores, sem importância e sem grandes repercussões. É uma forma de reproduzir a noção de “travessura” lá do caso de Berna. O clube manda uma mensagem para a sociedade de que estupros cruéis de mulheres não são coisas graves", destacou Ana Carolina Vimieiro.
Érica Renata de Souza fez um comentário genérico sobre episódios envolvendo clubes de futebol. "Passam a imagem de que são ainda estruturalmente machistas e acham que a vida das mulheres não vale nada. É essa a imagem que os clubes passam".
Em nota, o Atlético disse que confia na inocência de Cuca. “Sobre os antigos episódios envolvendo o nome do treinador (e que vieram à tona recentemente), o Clube entende que o assunto está superado, em face das últimas declarações dadas por ele. O Clube Atlético Mineiro afirma confiar no treinador, em suas palavras e, principalmente, em sua conduta: sempre proba e séria, inclusive durante o período em que treinou o nosso time. O Clube afirma, ainda, ter absoluto respeito pelas mulheres, defende a bandeira da igualdade e repudia qualquer ato de violência ou discriminação, contra quem quer que seja”.
Defesa de Cuca
Trinta e quatro ano depois, Cuca se pronunciou e disse ao blog da jornalista Marília Ruiz, no UOL Esporte, que não teve participação no caso. "Fui julgado à revelia, não estava mais no Grêmio quando houve esse julgamento com os outros rapazes. É uma coisa que eu tenho uma lembrança muito vaga, até porque não houve nada. Não houve estupro como falam, como dizem as coisas. Houve uma condenação por ter uma menor adentrado o quarto. Simplesmente isso. Não houve abuso sexual, [não houve] tentativa de abuso ou coisa assim", disse.
"Sou uma pessoa do bem, vivo numa família de mulheres, 90% da minha família são mulheres! Esse episódio de 1987 precisa ser explicado. Eu estava no Grêmio havia duas ou três semanas apenas, não conhecia ninguém. Eu jamais toquei numa mulher indevidamente ou inadequadamente. Sou um cara de cabeça e consciência tranquila. Tenho a consciência tranquila", acrescentou o treinador, em entrevista ao blog de Marília Ruiz.
"Resolvi juntar minha mulher e minhas duas filhas para falar desse caso de 12.400 dias atrás porque sou inocente", desabafou. "Eu preciso dar um basta nisso. Claro que essa história me incomoda demais. Não posso virar bandido depois de 34 anos". O treinador disse que não falará mais sobre o assunto.
A professora Ana Carolina Vimieiro questionou as declarações do treinador. "Cuca tentou se defender também a partir de um discurso em que sua moral ilibada serviria de prova de que não cometeu o crime. Vejo aqui a mesma estratégia da década de 1980, mas invertida. Se lá a moral da vítima é usada para culpabilização desta, agora é a moral dele que é usada para redimi-lo. Eu, como mulher e torcedora do Atlético, acho bastante incômodo o fato dele dizer que o caso é algo que ele tem uma “lembrança muito vaga”. E que ele resolveu dar um basta nisso, dando a entrevista. Como tem uma lembrança vaga? Ele ficou preso por quase um mês. Mesmo se ele fosse inocente, incomoda bastante essa afirmação, parecendo desdenhar da gravidade da acusação. E, lembrando, Cuca foi condenado a 15 meses de prisão pela Justiça Suíça por violência sexual contra pessoa vulnerável (com menos de 16 anos). Não cumpriu porque o Brasil não tinha acordo de cooperação com as autoridades suíças e nem extradita seus cidadãos".