Uma aventura aos 19 anos. Hoje, aos 89, Walter José Pereira, o Vavá, ainda carrega aquela viagem dos anos 1950 na memória e no coração. O Atlético se tornaria o primeiro time profissional de Minas – e um dos primeiros do Brasil – a excursionar pela Europa, com jogos na Alemanha, Áustria e França. E a campanha no inverno europeu, repleta de histórias rocambolescas e precariedade (mas também encantamento), acabou batizada pela crônica esportiva e popularizada como “Campeão do Gelo”. Terminou com os jogadores recebidos em festa na segunda quinzena de dezembro em Belo Horizonte.
Vavá é o único remanescente daquela equipe. Aliás, a história começou, segundo ele, por conta do interesse dos alemães, em especial, no aprimoramento de seu futebol. A tão decantada arte sul-americana, de jogadores brasileiros, argentinos e uruguaios, já existia e o fato de o Brasil sediar a Copa do Mundo, aguçou, ainda mais, o interesse europeu. E por esse motivo que surgiu o convite para o Atlético viajar à Europa.
Uma comissão de alemães, comandada pelo então jornalista, empresário e dirigente do Hamburgo, Eld Kaltenecker, veio para a América do Sul dois meses antes da Copa do Mundo. Segundo Vavá, com objetivo de aprimorar a modalidade na Alemanha. “O interesse não era só o futebol brasileiro, pois eles foram também à Argentina e ao Uruguai, mas encontraram no nosso país uma melhor organização do esporte. O objetivo era iniciar um intercâmbio, o que posteriormente se confirmou.”
Por que esse interesse? Vavá diz que esse grupo considerava o futebol europeu muito incipiente. No Brasil, o interesse inicial era o eixo Rio-São Paulo. “E por que o Atlético foi o escolhido? Observaram Palmeiras e Corinthians. Era a opção inicial. No Rio, Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo. Mas um jornalista, Canor Simões Coelho, que era o embaixador do futebol mineiro junto à extinta CBD (Confederação Brasileira de Futebol), sugeriu que viessem a Belo Horizonte. Indicou o Atlético. Eles vieram e viram um time bom, com jogadores de nível. E que sempre endureceu jogos contra equipes de Rio e São Paulo. E escolheram nosso time.”
O projeto dos alemães não se baseava apenas em uma equipe. Depois do Galo, viajaram para lá São Paulo e Bangu. “O Atlético abriu as portas para o futebol brasileiro na Europa”, afirma Vavá, um dos 19 'heróis do gelo'. A assinatura do contrato para a excursão ocorreu em 14 de julho de 1950, exatamente dois dias antes da final entre Brasil e Uruguai pela Copa do Mundo, no Maracanã, com surpreendente vitória uruguaia.
A dura viagem e muitas histórias
No fim de outubro, o Galo seguiria viagem, numa rota que durou mais de dois dias, de Belo Horizonte a Munique, onde ocorreria o primeiro jogo. BH-Rio-Recife-Dakar-Lisboa-Zurique-Frankfurt-Munique era o roteiro.
Vavá avalia que, por ser jovem, não sentiu o peso das quase 29 horas no ar, mas hoje qualifica como uma verdadeira aventura. “Saímos de BH para o Rio. Esse voo foi à tarde. Mas havia um detalhe que hoje seria considerado um absurdo. Jogamos contra o Cruzeiro na véspera. Ganhamos por 2 a 1. Estávamos cansados. Mas estávamos indo para a Europa, jogar lá. Não havia nada mais inspirador.”
No dia seguinte, depois do café no Rio, a ida para o Aeroporto de Santos Dumont. “Entramos num avião da Scandinavian Airline System. Era um quadrimotor. Seria a nossa casa nos dois dias seguintes. Embarcamos para Recife. Lá, paramos para almoçar e depois voltamos ao avião”. Dali para Dakar.
“O calor era insuportável. Jamais havíamos sentido algo assim, perto daquilo. Devia estar uns 40 graus. O Oswaldo, que era um gozador, tentou conversar com algumas pessoas, e depois disse: 'Eles são mais inteligentes que a gente, pois falam francês'. Foi gargalhada geral”.
De Dakar para Lisboa. Cansados? Nada. “Era uma farra. Nem sentimos”. Da capital de Portugal para Zurique, na Suíça. Um passeio pelas lojas do aeroporto e logo um incidente. “O pessoal começou a pegar pacotes de balas aos montes, coisa que não tinha no Brasil, e punha nas sacolas. Os funcionários perceberam e, quando fomos sair, cada um com um saquinho apenas para pagar, veio uma surpresa. Um funcionário disse que ia dar uma cortesia e o presente foram as balas”.
E de Zurique para Frankfurt, na Alemanha, e dali para Munique. A alegria de chegar contrastou com o medo, o frio. “Não tínhamos levado blusas de frio para enfrentar aquilo tudo. Era muito frio. Tinha neve, coisa que a gente nunca tinha visto, só ouvido falar e visto em revista. Mas lá estávamos nós, na neve. O que fazer? O jeito foi comprar roupas. Blusas, luvas, gorros, camisa de manga comprida, estola, camisetas de malha para vestir por baixo das camisas. Foi essa a solução. Nem passamos direito no hotel. Deixamos a bagagem e fomos para uma loja”, relembra Vavá.
Começam os jogos
No dia seguinte à chegada a Munique, em 1º de novembro, o primeiro jogo. O adversário, Munique 1860. Vavá conta que o time sentiu o frio. “Ganhávamos por 4 a 1 e eles marcaram dois no segundo tempo. A gente parecia duro dentro de campo. Mas, enfim, ganhamos por 4 a 3, uma bela carta de apresentação”. A segunda partida, três dias depois. O adversário era mais forte, o Hamburgo. Goleada alvinegra. “Foi um de nossos melhores jogos. Ganhamos por 4 a 0. Goleada. Demos um show de bola. Não demos qualquer chance a eles. Dominamos do início ao fim”.
Mas se houve uma folga do primeiro para o segundo jogo, para o terceiro, não. Um dia depois, a viagem a Bremen, onde o time chegou na hora do almoço e foi direto para o estádio, onde enfrentaria o Werden Bremen. O resultado, a primeira derrota: 3 a 1. “Era um domingo. Jogamos contra o Hamburgo no sábado. O jogo tinha sido desgastante. Corremos muito. Acordamos cedo para viajar. O time estava cansado. Ainda houve um outro problema, pois tinha nevado. O campo virou um verdadeiro lamaçal. Kafunga chegou a ficar preso no barro num dos gols”, descreve Vavá.
Em meio à viagem, nos jantares, havia discursos formais de dirigentes, traduzidos pela então campeã brasileira de lançamento de dardos, Teodora Breickport, que seguira com a delegação. Faltava alegria, segundo Vavá. O goleiro Kafunga mudaria aquilo tudo. “Ele chamou a tradutora e disse a ela apenas para repetir 'A Alemanha é o melhor país do mundo'. Virou o orador da excursão. Era aplaudido efusivamente”.
O Galo só voltaria a campo em 12 de novembro, em Gelsenkirchen, contra o Schalke 04. “Foi bom, pois deu pra treinar e passear. Foi como recarregar as baterias”, conta Vavá. O resultado, 3 a 1 para o Atlético. Nova folga, agora de três dias. Mas outra maratona esperava pelos jogadores. “O jogo seria em Viena, na Áustria. Fomos de trem. Havia um vagão só para o Atlético. Era pra ser uma viagem tranquila, mas acabou virando um martírio”, conta Vavá.
Os dois goleiros, Kafunga e Mão de Onça, resolveram dar uma volta pelo trem. “Houve uma parada e desengataram um vagão, justamente onde os dois estavam. Quando chegamos a Viena, cadê Kafunga e Mão de Onça?”. Horas e horas de espera, e nada. “Não tínhamos goleiro. Seria um vexame. Na hora de entrar em campo, os dois apareceram esbaforidos, colocaram o uniforme”. O resultado, porém, foi negativo: 3 a 0 para os austríacos.
O sexto jogo, dia 20 de novembro, contra o desconhecido Sarrebrück, numa região entre a França e a Alemanha. Segundo Vavá, uma mistura de jogadores alemães, austríacos e franceses: 2 a 0 para o Atlético. Dali para Bruxelas, na Bélgica. O adversário, o forte Anderlecht. Pela primeira vez, um jogo à noite na excursão. Um detalhe chamou a atenção de Vavá, o centroavante adversário. “Era caolho. Ficava fustigando o Kafunga. Juca era esquentadinho e numa bola alta, ele foi com um pé na bola e outro na cara do sujeito. O rival caiu apagado, teve de ir para o hospital”. No placar, triunfo por 2 a 1.
O oitavo jogo leva o Atlético de volta à Alemanha, para Braunschweig, contra o Eintracht. Vitória por 3 a 1. Ali, os jogadores, segundo Vavá, já sentiam saudade de casa. O sétimo compromisso, contra a Seleção de Luxemburgo, em 5 de dezembro: 3 a 3. “O time já estava cansado”, conta.
O Atlético viaja então para Paris. Seria o último jogo, ainda que Eld Kaltenecker quisesse estender a excursão, mas se desentenderia com a diretoria atleticana pelas condições adversas de viagem, com comida escassa, quartos sem aquecimento e falta de acerto financeiro. “Chegamos e fomos para o hotel. O Ricardo Diez (técnico) era cheio de precauções. Reuniu todos e disparou: 'Vou avisar uma vez só. Essa é uma cidade muito perigosa. Não quero que saiam sozinho e nem sem avisar. Tenho de saber onde estão indo'”.
O jogo era contra o Stade de Francais (o hoje Paris Saint Germain). Lá ocorreria uma situação dramática no 2 a 1 para o Galo. “Estava muito frio e o Barbatana teve hipotermia. Desmaiou em campo. Teve de ser levado para o hospital. A gente jogando e sem saber o que tinha acontecido com ele. Foi preciso colocá-lo numa banheira de água quente para recobrar os sentidos”.
Se dependesse de Kaltenecker, o Atlético ainda jogaria na Inglaterra (Arsenal) e Itália (Milan). “A gente queria voltar. Fizemos uma espécie de greve. Dissemos que não jogaríamos mais”. O grupo venceu, mas só viabilizou o retorno com apoio do governo de Minas, que pagou as passagens de volta, e apoio da embaixada brasileira em Paris.
O elenco teve de ser dividido. Foi chegando aos poucos, se concentrando no Rio de Janeiro, até que, em 18 de dezembro, todo o grupo chegou a Belo Horizonte. Desembarcou na Pampulha com direito a festa e desfile em caminhão do Corpo de Bombeiros. “A gente não tinha a dimensão do significado da excursão. O jornal dizia que os 'campeões do gelo' estavam voltando. Saímos do aeroporto e a Avenida Antônio Carlos estava lotada. Gente de um lado e do outro. Fomos até o Palácio da Liberdade. Fomos recebidos pelo governador Milton Campos. Aquilo foi o máximo, ainda mais pra mim, que tinha apenas 19 anos”.
Mas a maratona não acabava ali. Dois dias depois, o time já estava novamente treinando para a fase final do Campeonato Mineiro de 1950. No dia 31 de dezembro, jogo com o América. O Galo ganhou por 6 a 2. Vavá fez três gols. Em 7 de janeiro de 1951, derrota para o Villa Nova, 3 a 1, mas bastava vencer o Sete de Setembro para levantar o troféu. E uma goleada por 8 a 2 selou o bicampeonato.
A CAMPANHA DO GELO
10 jogos
6 vitórias
2 empates
2 derrotas
TODOS OS JOGOS
Munique 1860 3 x 4 Atlético
Gols: Lucas (2), Lauro e Vaguinho
Público: 30 mil
Hamburgo SV 0 x 4 Atlético
Gols: Lucas, Nívio (2) e Alvinho
Público: 20 mil
Werden Bremen 3 x 1 Atlético
Gol: Lucas
Público: 26 mil
Schalke 04 1 x 3 Atlético
Gols: Vaguinho (2) e Lucas
Público: 30 mil
Rapid Viena 3 x 0 Atlético
Púbico: 60 mil
Sarrebrück 0 x 2 Atlético
Gols: Nívio (2)
Público: 16 mil
Anderlecht 1 x 2 Atlético
Gols: Vaguinho e Alvinho
Público: 35 mil
Eintracht Braunschweig 3 x 3 Atlético
Gols: Vaguinho, Alvinho e Murilinho
Público: 30 mil
Union Luxembourg 3 x 3 Atlético
Gols: Vaguinho, Lauro e Nívio
Público: 1.800
Stade Français 1 x 2 Atlético
Gols: Nívio e Lucas
Público: 40 mil
O TIME DO ATLÉTICO DE 1950
GOLEIROS
Kafunga
Mão de Onça
DEFENSORES
Moreno
Afonso
Oswaldo
Juca
Vicente Perez
MEIO-CAMPISTAS
Zé do Monte
Barbatana
Márcio
Haroldo
ATACANTES
Lucas Miranda
Lauro
Zezinho
Alvinho
Nívio
Vavá
Murilinho
Vaguinho
TÉCNICO
Ricardo Diez