Superesportes

ATLÉTICO

Militante anti-ditadura na juventude, Sampaoli se identifica com a esquerda e tem histórico de se posicionar politicamente

Novo treinador do Atlético já se declarou peronista e kirchnerista na Argentina. A amigos, demonstrou discordâncias às ideias do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro

João Vitor Marques
Novo técnico do Atlético, Sampaoli se identifica com a esquerda - Foto: Ivan Storti/Santos
Ainda nos primeiros anos de vida, o inquieto Jorge Luis Sampaoli Moya passava muito tempo numa fábrica de peças, na pequena cidade de Casilda, na província argentina de Santa Fé. Por lá, além de ajudar o tio, o garoto despertava para uma paixão que ainda o acompanha, aos 59 anos: a política. Mais precisamente, a identificação com a esquerda.



O novo treinador do Atlético nasceu e cresceu num país que enfrentava uma ditadura militar. A fábrica de peças do tio era ponto de encontro de peronistas, contrários ao regime. Ainda adolescente, Sampaoli tinha a função de avisá-los do perigo. “Se passava um Ford Falcón verde - carro preferido dos militares para sequestrar pessoas -, eu apertava um botão para que eles soubessem”, contou o técnico, em passagem da biografia No Escucho y Sigo, escrita pelo jornalista Pablo Paván.

Curiosamente, o pai de Sampaoli, Rodalgo, era policial. “Um que nunca atirou”, conta o filho. E um muito preocupado. Ao longo dos anos 1970 e 1980, o treinador foi advertido seguidas vezes para que tomasse cuidado quando fosse ouvir um dos rocks de que mais gostava: La Marcha de La Bronca, de autoria da dupla Pedro y Pablo (ouça no vídeo abaixo). A canção critica abertamente a ditadura e fala sobre supressão de direitos, censura e esperança.


“Jorge é peronista. Ele viveu nos anos 1970, foram dias muito duros”, diz ao Superesportes o assessor do treinador, Ezequiel Scher. A corrente política surgiu com base nas ideias de Juan Domingo Perón, presidente da Argentina em três oportunidades (de 1946 a 1952, de 1952 a 1955 e de 1973 a 1974). Como conta Pablo Paván, Sampaoli chegou a ter na parede de casa um quadro de Eva Perón, ex-primeira-dama, atriz e líder política.



Em 2013, Sampaoli se definiu como “kirchnerista” em entrevista ao jornal chileno La Tercera. Néstor Kirchner e Cristina Kirchner governaram a Argentina por 12 anos (entre 2003 e 2015). Em 2019, Cristina voltou ao poder ao ser eleita vice de Alberto Fernández e colocar fim ao governo do liberal Mauricio Macri, período em que o país vivenciou crise financeira e social.

“Estou feliz pelas mudanças que se deram na Argentina. O presidente (do Brasil, Jair Bolsonaro) tem uma opinião diferente. Respondo o que sinto, e pela chegada de um governo que vai estar próximo ao povo. O que espero é que os argentinos não sofram o que sofreram nos últimos tempos”, disse Sampaoli pouco após a eleição de Alberto Fernández e Cristina Kirchner.

Icônica foto de Sampaoli em cima de uma árvore para dirigir o time durante um jogo - Foto: La Capital/Reprodução

Durante o governo Macri (2015-2019), o treinador chegou a se reunir duas vezes com o então-presidente, identificado com ideais da direita e do neoliberalismo. Sampaoli, porém, deixou claro a jornalistas que aceitou os encontros com o político, que já presidiu o Boca Juniors, por “obrigação” do cargo de treinador da Seleção Argentina.



Ao Superesportes, o biografista Pablo Paván diz que Sampaoli se identifica com o peronismo e o kirchnerismo por conta da preocupação com as populações marginalizadas. “É um homem de esquerda. Sempre se vincula às necessidades dos mais frágeis. Está atento às necessidades do povo. É um homem de gostos e simpatias populares. Esses sentimentos populares estão incluídos no peronismo e no kirchnerismo. O povo argentino os elegeu em massa e eles governaram para essas pessoas com as quais Jorge se sente identificado”.

Longe da Argentina em boa parte dos últimos anos, Sampaoli se manteve vinculado a questões políticas e sociais do país. “Ele tem um grande compromisso com as Avós da Praça de Maio e as apoia muito”, diz Ezequiel Scher. A Associação Civil Avós da Praça de Maio é uma ONG de direitos humanos que tem como objetivo “localizar e restituir a suas legítimas famílias todas as crianças desaparecidas pela última ditadura”.

No Chile


Sampaoli cumprimenta a ex-presidente do Chile Michelle Bachelet - Foto: José Manuel de la Maza
Sampaoli passou oito anos no futebol chileno. Por lá, dirigiu O’Higgins, Universidad de Chile e a seleção. Durante o período no país andino, o treinador se envolveu diretamente com política. Não eram raros os encontros do argentino com a ex-presidente Michelle Bachelet, identificada com a esquerda e atual alta comissária para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).



Já como treinador do Santos, Sampaoli se manifestou publicamente contra o sucessor de Bachelet na presidência do Chile, Sebastián Piñera. “Valorizo muito a reação dos chilenos depois de tanto tempo de opressão”, posicionou-se o argentino, que conquistou de forma inédita a Copa América no comando da Seleção Chilena, em 2015.

“É um exemplo para todos na América do Sul. Lutar contra o neoliberalismo, que deixa o povo cada vez mais pobre. Uma rebelião contra os que estão no poder e só pensam nisso. Estou orgulhoso das pessoas com as quais convivi por tanto tempo. Espero que seja um passo adiante para acabar com a opressão a esse povo”, finalizou Sampaoli.

Na Espanha


Sampaoli entre o diretor Monchi (esquerda) e o presidente do Sevilla, José Castro (direita) - Foto: Cristina Quicler/AFP

Depois de conquistar a Copa América, o treinador protagonizou uma saída conturbada da Seleção Chilena para trabalhar no Sevilla, da Espanha. Assim que chegou à capital andaluz, foi levado pelo presidente do clube, José Castro, para conhecer a suntuosa Catedral de Santa Maria.



Durante a visita ao local, o dirigente mostrou uma placa a Sampaoli e disse: “Ali estão os restos mortais do descobridor de seu continente, Cristóvão Colombo”. O argentino, então, rebateu o espanhol: “Desculpe, mas vocês acham que descobriram. O continente já existia. Vocês chamam um genocídio de descobrimento”.

No Brasil


Desde que chegou ao Brasil no início de 2019, Sampaoli pouco falou publicamente sobre política. A amigos, já reforçou inclinação à esquerda e as discordâncias em relação a Jair Bolsonaro (sem partido). Em novembro passado, o argentino negou que tivesse pedido que o Santos vetasse a presença do presidente em um jogo na Vila Belmiro.

“Isso é democracia. O presidente tem direito de ir aonde quiser, não sei o que pensam de achar que posso impedir a presença de alguém, seria uma falta de respeito. Sobre pensamentos políticos, eu prezo por defender a democracia. Eu vivi a ditadura no meu país, nunca seria alguém que não defende isso (democracia), e isso é defender que qualquer um pode ir aonde quiser. Veja o que acontece na Bolívia, que a democracia está debilitada”, disse, em menção ao conturbado cenário político boliviano em meio à renúncia do ex-presidente Evo Morales.



Jorge Sampaoli em ação no comando do Santos - Foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press

Por aqui, Sampaoli preferiu colocar em prática o posicionamento político em ações do dia a dia. Antes de iniciar o trabalho diário no CT Rei Pelé, encontrava-se com garotos que escalavam árvores para acompanhar os treinos do Santos. O argentino chegou a presenteá-los com chuteiras e ovos de páscoa, além de liberar a presença das crianças nas atividades do time, o que era proibido a jornalistas. Certo dia, o treinador levou os garotos à sua casa para conhecer o filho recém-nascido.

Internamente, o convívio de Sampaoli com funcionários do Santos não era dos melhores. Porém, o treinador protagonizou uma outra história que chamou atenção. Em março, optou por devolver integralmente o salário ao clube até que todos os jogadores tivessem os vencimentos pagos em dia.