Há exatamente 50 anos, os jogadores do Atlético entravam no gramado do Mineirão sem vestir alvinegro. Com uniformes na cor vermelha da Federação Mineira de Futebol (FMF), a equipe comandada pelo lendário técnico Yustrich fez história diante dos olhares de 71.433 torcedores. Naquela noite de 3 de setembro de 1969, os donos da casa venceram nada mais, nada menos que a Seleção Brasileira por 2 a 1.
Menos de um ano depois, a equipe de Pelé, Tostão, Gérson e Rivellino conquistaria o tricampeonato mundial no México e ficaria gravada no imaginário popular como um dos grandes esquadrões de todos os tempos. A noite no Mineirão, porém, era mesmo do Atlético, que findou uma sequência de 13 partidas de invencibilidade das ‘feras de João Saldanha’.
“Nós sabíamos que o Brasil era favorito. Mas eu falei uma coisa: eu conhecia até as minhocas do Mineirão. O Mineirão era minha casa, o meu quarto, o meu lar. Então, se alguém fosse levar vantagem, seria o Atlético, que estava acostumado a jogar no Mineirão”, conta o folclórico ex-centroavante Dadá Maravilha, segundo maior artilheiro da história alvinegra, com 211 gols.
Naquele jogo, o ídolo atleticano foi o responsável por fazer o gol da vitória, aos 19 minutos do segundo tempo. Antes, o ex-meio-campista Amauri Horta abriu o placar para o Atlético numa finalização de fora da área, ainda no primeiro tempo. Pelé, em posição de impedimento, marcou para a Seleção Brasileira.
“Nós jogamos bem desde o início. Não foi um caso de falar que era uma coisa absurda chegar ao final do primeiro tempo e estarmos ganhando de 1 a 0. Depois, no segundo tempo, tivemos força para suportar um gol de empate do Pelé e buscamos o gol da vitória com Dario”, relembra Amauri.
Favoritismo canarinho
“Vou ser sincero: eu estava indo para o Mineirão igual um boi quando vai para um matadouro para morrer”, corrobora Dadá, que, depois, com o tradicional bom humor, garantiu: foi melhor que Pelé naquele jogo. “Naquela noite eu estava impossível”.
A atuação no Mineirão reforçou os pedidos por Dadá na Seleção Brasileira. A principal voz da campanha pela convocação foi a de Emílio Garrastazu Médici, terceiro presidente da ditadura militar (1964-1985). O general chegou a interferir na antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD) pela demissão do técnico João Saldanha, assumidamente de esquerda e que não era fã do futebol do artilheiro atleticano. O centroavante viria a ser convocado pelo novo treinador, Zagallo, que o levaria para a Copa do Mundo do México.
Elogios à torcida atleticana
Apesar do favoritismo, jogadores e treinador da Seleção Brasileira deixavam claro o respeito ao Atlético. O time de Yustrich era bastante elogiado. “Vamos enfrentar uma equipe armada, de categoria indiscutível, com disciplina técnica e tática”, disse Saldanha ao EM, à época.
Mas, além de aspectos técnicos e táticos do Atlético, outro fator foi bastante citado: a torcida alvinegra. “É bom saber que os atleticanos estão do lado da gente, enfrentar esta torcida não é fácil. Ficamos até surpresos com a recepção da charanga, mas sabemos que no Mineirão a coisa vai mudar, aqui é apenas uma cordialidade, tão tradicional nos mineiros”, disse Gérson ao se surpreender com a recepção na chegada a Belo Horizonte.
Até Pelé, à época bicampeão do mundo, se rendeu: “Se perdermos, ninguém vai aguentar essa torcida do Galo”. João Saldanha também citou o peso de um Mineirão lotado: “Conheço o Atlético, sua garra e a força de sua massa de torcedores. Sei como ele se agiganta nos grandes jogos. É até bom para nós enfrentar um ambiente ‘quente’ como só os torcedores do Atlético sabem criar, porque fora do Brasil, a seleção vai ter sempre - em amistosos ou na Copa - a torcida contra”.
Na edição de 3 de setembro do EM, um outro relato de Saldanha sobre a torcida alvinegra chamou atenção: “Vocês podem estar certos de que, se o Brasil precisar da vitória no último jogo das Eliminatórias, vou fazer de tudo para levá-lo para Belo Horizonte. Lá o campo é bom e oferece garantias. O resto deixo por conta da torcida do Atlético”.
Postura atleticana
O que fazer para vencer a poderosa Seleção Brasileira? Para Yustrich - lendário goleiro do Flamengo e treinador dos três principais clubes da capital mineira -, o segredo era fazer o simples. Confiante, ele cravou ao EM: “Elas (as feras de saldanha) ainda estão mansas. Se vierem com o pensamento de que vamos amolecer, estão todos enganados. Uma coisa é certa. O Atlético deve apresentar melhor futebol que os adversários das eliminatórias”.
E foi apenas isso o que o treinador admitiu falar sobre o jogo. A entrevista publicada no dia da partida tratava de redesenhar a imagem de Yustrich, cuja carreira é marcada por polêmicas. “Do homem severo, impaciente, muda para um colono dos mais modestos, de pés no chão e roupa suja. Colhia verduras em seu sítio para alimentar os porcos, mais de 150. Trata dos animais cuidadosamente, várias vezes por dia”, lê-se no texto.
Yustrich, porém, não se aguentou e brincou diante das insistentes perguntas do repórter sobre a preparação para encarar o Brasil: “Você enche, hein? Pois bem, escreve lá: o Atlético vai amolecer o jogo contra a Seleção. Não é isso que você quer (gargalha)? Antes havia me perguntado o que achava da Seleção e o respondo que não sei de nada, porque ainda não a vi jogar, nem através dos videotapes, nem as três partidas do Maracanã. Rádio eu quase não escuto. Nesses dias, estava no meu sítio, cuidando de minhas criações”.
O “novo Yustrich”, porém, ficou fora dos gramados. Após a vitória por 2 a 1 sobre a Seleção Brasileira, o treinador deu fortes declarações a uma emissora de rádio e xingou o colega João Saldanha. O caso foi parar na Polícia Federal, onde o comandante alvinegro pediu desculpas e depôs.
Morte no Mineirão
A partida entre Atlético e Seleção Brasileira foi precedida por um clássico entre Cruzeiro e América. Durante o duelo entre os rivais mineiros, um torcedor identificado como João Mota não suportou um ataque cardíaco nas arquibancadas do Mineirão e morreu.
Esse não foi o único incidente no estádio naquela noite. Segundo o EM, “houve muitas prisões, um atropelamento fatal e vários de menos gravidade, muitas batidas de carro e poucos menores desaparecidos”.
Responsável pelo policiamento, o capitão Sabino deu uma resposta curiosa a respeito dos problemas: “Esse negócio de brigas, prisões e pequenas confusões é muito natural em jogos grandes. Nós esperávamos tudo isso. A rigor, não houve nenhum fato excepcional. Fatos comuns mesmo, que a gente vê todo dia”.
O jogo
Mais de 70 mil torcedores foram ao Mineirão naquela noite. O público, que a versão atual do estádio não comporta, ficou aquém do esperado pelo clube alvinegro. “O Atlético não encontrou justificativa para o pequeno interesse do público pelo jogo. Quase 50 mil ingressos deixaram de ser vendidos, impedindo que o Atlético tivesse muito lucro com a promoção”, lê-se no EM.
Em campo, os destaques do Atlético foram os autores dos gols - Dadá e Amauri - e o goleiro Mussula, efetivo em parar o poderoso ataque rival. Na análise publicada no EM, o resultado serviu para identificar problemas na zaga do Brasil: “A importância da vitória do Atlético comprovou que a defesa da Seleção Brasileira não está bem”.
“Não é que foi para atrapalhar a Seleção Brasileira a gente ganhar (risos). A gente ia ganhar porque a gente tinha um time bom, diversos jogadores. Tinha uma equipe boa. Na frente, o Vaguinho era extremamente rápido, o Tião vinha pelo meio do lado esquerdo para ajudar”, conta Amauri.
Durante o jogo, a expulsão do lateral-direito Carlos Alberto, da Seleção Brasileira, fez com que o Atlético melhorasse de rendimento. No fim, triunfo dos donos da casa por 2 a 1 e festa grande no Mineirão.
“Foi uma loucura, pois ganhamos de uma seleção que estava invicta. Era uma seleção fantástica, tanto que foi campeã do mundo e é considerada até hoje a maior seleção que o mundo já viu”, comemora Dadá, que fez Yustrich chorar ao ver o gol da vitória.
A vitória atleticana rendeu elogios aos montes. Ex-colunista social, Jacinto de Thormes cravou: “O Atlético não é um clube - é quase um país. Pois até parece que o Brasil enfrentou uma poderosa nação futebolística: a República do Galo”.
Ficha do jogo
ATLÉTICO 2 X 1 SELEÇÃO BRASILEIRA
Atlético
Mussula; Humberto Monteiro, Grapete, Normandes (Zé Horta) e Cincunegui (Vantuir); Oldair e Amauri Horta (Beto); Laci; Vaguinho, Dario e Tião (Caldeira)
Técnico: Yustrich
Seleção Brasileira
Félix; Carlos Alberto, Djalma Dias, Joel e Rildo (Everaldo); Piazza e Gérson (Rivellino); Jairzinho, Tostão (Zé Maria), Pelé e Edu (Paulo César)
Técnico: João Saldanha
Motivo: Amistoso
Estádio: Mineirão
Data: 3 de setembro de 1969
Árbitro: Amílcar Ferreira
Assistentes: José Assis Aragão e João Alberto Teixeira
Público: 71.433 pagantes
Gols: Amauri (42) e Dario (65) para o Atlético; Pelé (50) marcou para a Seleção Brasileira