No dia em que o Atlético se tornou campeão brasileiro, em dezembro de 1971, a charanga do Júlio dividiu-se pela primeira vez em sua história: parte acompanhou o time e a torcida, que encheu 45 ônibus na viagem até o Maracanã, e parte ficou em Belo Horizonte para esperar os jogadores no aeroporto da Pampulha e fazer a festa em caso de conquista do título. A acertada estratégia foi obra de Júlio Firmino da Rocha, conhecido como Júlio, o mais amigo, que, como sempre fazia, bancou o custo dos ônibus e das duas charangas.
Os recursos para tantas despesas saíam das oito unidades do popular Armazém do Júlio instaladas no Centro e bairros de Belo Horizonte. A charanga do Júlio, fundada em 1966, durou até 1985, época em que a chegada dos supermercados sufocava os antigos armazéns de secos e molhados e coincidia com os novos tempos de profissionalização do futebol e de tudo que o cercava.
Hoje, aos 79 anos, recolhido à casa que construiu no alto do Morro do Cruzeiro, na periferia de Lagoa Santa, Júlio Firmino da Rocha observa a distância a cena do esporte que sempre amou e fica “arrasado” com episódios como o que culminou com a morte do torcedor cruzeirense Otávio Fernandes, vítima de briga com atleticanos no fim do ano passado. “Pode uma coisa dessas? É o fim do mundo. Sempre falei, futebol é lá no campo. Cada um torce pelo seu time. Acabou o jogo, terminou”, diz ele.
Naquela época, diz ele, era assim. “Quando estava no comando da charanga, sempre impedi o pessoal de organizar torcida. Sabia que, se organizasse, ia ter essa confusão que a gente vê hoje”. Quando se afastou da charanga e das arquibancadas, Júlio diz ter avisado aos dirigentes que as torcidas organizadas iam causar problemas e que seria muito diferente da tradicional participação dos torcedores nos jogos.
Era Júlio quem pagava os ingressos e o transporte dos integrantes da charanga – 18 músicos, 40 percussionistas e mais 80 pessoas que compunham a turma das bandeiras. Para os jogos no Mineirão, o grupo se reunia no Conjunto Iapi, na Lagoinha, onde era feito o embarque em caminhões. Para as viagens, Júlio fretava os ônibus que conduziam os torcedores. Só muito mais tarde, garante ele, o Atlético autorizou que o preço dos ingressos fosse descontado, no borderaux, da cota do Atlético.
Segundo Júlio, os ingressos da charanga do Cruzeiro, liderada pelo radialista Aldair Pinto, sempre foram custeados pelo clube. E a relação de amizade de Júlio com Aldair dava a medida da rivalidade, que sempre foi muito grande, mas tinha características que, nem de longe, chegavam às raias da violência e dos arrastões, como hoje. Ele destaca também a amizade que sempre manteve com Felício Brandi, ex-presidente do clube adversário. “Foi um dos melhores amigos que tive na vida”, revela.
O ex-chefe da charanga lembra que Aldair Pinto, quando era ironicamente chamado de atleticano por algum ouvinte de seu programa no rádio, colocava para tocar a música Eu não sou cachorro, não, de Waldick Soriano, fazendo uma analogia com o bordão “cachorrada”, repetido pela torcida cruzeirense para afrontar os adversários, para quem o goleiro Raul, com sua camisa amarela, por exemplo, era a Wanderléa.
Júlio faz comparações do profissionalismo e da paixão de hoje com os da época em que participava. “O futebol perdeu a característica de antigamente de jogar pelo amor à camisa. Hoje, olham só o dinheiro”, lamenta. Para os jogadores, diz, o aumento do envolvimento financeiro foi “uma maravilha”, porque hoje eles “ganham fortunas”, mas as mudanças, na visão dele, trouxeram perdas, como a do amor à camisa e da identificação com os clubes.
E o ex-chefe da charanga e da torcida fala com a autoridade de quem se envolvia com a renovação de contratos dos principais jogadores e até com a solução de crises entre atletas, treinadores e dirigentes. Com saudades, Júlio vai enumerando as situações em que foi chamado para intervir, atendendo apelo de jogadores, para quem ele era o “padrinho”, ou de dirigentes, que o chamavam de “chefe”.
“Começou com o ponta-direita Vaguinho”, recorda. Mas muitos outros recorreram ao padrinho na hora de renovar contrato, como o ponta-esquerda Romeu. A negociação não se desenrolava e o jogador só não foi embora porque Júlio arcou com o valor das luvas. “Romeu queria um valor suficiente para comprar duas casas, uma para ele e outra para o pai”, conta Júlio. O Atlético não tinha o dinheiro e Júlio resolveu “segurar a parada”.
Os jogadores acabavam revelando mais confiança no padrinho do que nos dirigentes. No episódio da renovação do contrato de Romeu, só a presença de Júlio na sala deu tranqüilidade ao jogador para pôr sua assinatura no documento, porque ele ainda não tinha recebido o valor combinado. “O menino não acreditou neles. Eu falei: ‘Pode assinar. Amanhã, você passa na firma que eu lhe dou a metade e um cheque com a outra metade para 30 dias’”, revela o mais amigo.
Não era por acaso que os jogadores pediam ao padrinho para estar presente na hora das negociações ou das crises. É o caso do lateral uruguaio Cincunegui, que chamou Júlio para interferir em uma desavença dele com o técnico Telê Santana. Aliás, Cincunegui também se beneficiou da generosidade de Júlio, o mais amigo, ao receber um Fusca zero- quilômetro em tempos de renovação de vínculo com o Atlético.
“Era como um ministro sem pasta. Eles falavam o que eu mandava”, admite o próprio Júlio. No entanto, ele garante que não interferia na escolha de jogadores, apenas contribuía financeiramente na hora de acertar os vínculos. “Renovei o contrato de tanta gente...”, revela. “Nas crises, o mais amigo entrava para apaziguar as partes. O Júlio chegava para fazer as pazes.”
O benfeitor do clube afirma que não faz ideia do total que empregou nas renovações de contrato, na manutenção da charanga e nas viagens da torcida, mas sustenta que não se arrependeu de nada. “Se tivesse que fazer hoje, faria de novo”, garante. O benefício que obtinha era o nome do armazém estampado nas bandeiras e nas camisas dos integrantes da charanga, porque naquela época nem se falava em patrocínio em troca da marca no uniforme dos jogadores e dos produtos comercializados pelo clube.
Entre as lembranças de Júlio está o jogo de 3 de setembro de 1969, em que o Atlético venceu por 2 a 1 a Seleção Brasileira que conquistaria o tricampeonato no México no ano seguinte. O mais amigo mandou fazer uma bandeira do Atlético com “mil, quatrocentos e tantos metros quadrados” para estender no gramado, antes da partida. “Era a maior bandeira do mundo”, orgulha-se o veterano chefe de torcida.
Gosto pelo comércio e paixão pelo Galo
Júlio, o mais amigo, deixou Itinga, no Vale do Jequitinhonha, aos 12 anos, para tentar a vida em Belo Horizonte. Na terra natal, o mais velho de sete irmãos “tirava leite daquelas vacas de peito duro” na fazendinha do pai, a cinco quilômetros da zona urbana. Na capital, descobriu o gosto pelo comércio. Aos 15 anos, viajava a Araraquara, em São Paulo, onde adquiria meias “com pequenos defeitos” e incorporava ao estoque de produtos que vendia como mascate pelo interior.
“Comprava malas de mercadoria”, conta ele. O primeiro armazém, na esquina de Rua Guarani com Caetés, no Centro de Belo Horizonte, foi aberto já na década de 60. Até encerrar as atividades, duas décadas depois, ele foi abrindo outros pontos, chegando a oito unidades.
No início, usava o bordão “Júlio, o carijó garantido”, criado pelo cantor Caxangá ao fazer reclame das ofertas no programa de rádio em que o comerciante anunciava. O slogan “o mais amigo”, segundo ele, foi cunhado pela própria clientela, com naturalidade. “Eu dava coisas para os menos favorecidos pela sorte. E a voz do povo é a voz de Deus”.
Há 14 anos, Júlio construiu uma casa no alto do Morro do Cruzeiro, em Lagoa Santa, bem próximo a uma singela igreja de Nossa Senhora da Conceição. Foi morar lá, revela, para cumprir uma promessa de ficar perto da santa da sua devoção, na igrejinha mais humilde a ela dedicada. Ele diz que alcançou a graça pretendida e que, tantos anos depois, já está liberado do compromisso com a santa. Por isso, Júlio faz planos de voltar a viver em Belo Horizonte, onde, segundo ele, fez muitos amigos.