O ano de 1966 foi especial para o futebol mineiro. Recém-inaugurado, o Mineirão tinha apenas um ano de vida. Na época, havia somente uma competição nacional, a Taça Brasil, apesar de o Torneio Rio-São Paulo reunir os clubes mais importantes do país, até então. Mas era da Taça Brasil que, desde 1959, saía o representante brasileiro na Copa Libertadores. E coube ao Cruzeiro, há 50 anos, levantar o troféu derrotando o Santos de Pelé, considerado o melhor time do mundo.
O título celeste acabou obrigando a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que comandava o futebol, a criar um campeonato brasileiro com os clubes mais fortes do país a partir daí. Nascia o Torneio Roberto Gomes Pedrosa – o Robertão, como foi apelidado –, que tinha além de cinco paulistas e cinco cariocas, dois times mineiros, dois do Rio Grande do Sul, um do Paraná, um da Bahia e um de Pernambuco. Eram 11 valentes jogadores que fizeram história, ou melhor, a mudaram. Tudo o que ocorreu antes, durante e depois pode ser resumido em cinco palavras aparentemente inconciliáveis: insegurança, coragem, determinação, surpresa e satisfação. E ninguém melhor do que os próprios personagens para revelar os casos, os bastidores, as curiosidades. Por isso, o Estado de Minas e o Superesportes reuniram seis dos campeões brasileiros de 1966 para contar a história do título que mudou o Cruzeiro de patamar, alçando o clube entre os grandes do Brasil e do continente.
Eles estão juntos novamente. Agora, em um momento de recordação. Raul, Procópio, Neco, Dirceu Lopes, Natal e Evaldo se reencontraram no Mineirão para relembrar a primeira grande conquista de suas carreiras, pois foi ali que, para eles, tudo começou. E é quando surgem as histórias, os apelidos, as brincadeiras, as horas difíceis. Como se sentiam nos momentos que antecediam os jogos? O que ocorreu no intervalo entre uma partida e outra da final? E a sensação de levantar a taça com duas vitórias incontestáveis sobre o Santos de Pelé?
Era um tempo em que eles eram meninos. “A gente brincava de esconde-esconde na Toca da Raposa, que tinha sido inaugurada naquele ano”, lembra Raul, o goleiro da camisa amarela. Aliás, o uniforme que ele usava o fez recordar que não tinha uma camisa para vestir quando chegou ao Cruzeiro e que foi o lateral-esquerdo Neco que emprestou a dele, amarela. “Como o Cruzeiro ganhou, virou a camisa da sorte. Mas eu só levei desvantagem com aquela camisa, pois era chamado de bicha, de Vanderléia. Mas, quer saber, eu nem ligava.”
Próximo dele está Evaldo, o centroavante do time, que nunca tinha jogado com a camisa 9. Dizem até que foi ele quem ensinou Tostão a jogar como jogou na Copa de 70. “Nem me fale isso. Quem sou eu pra ensinar o Tostão. A vantagem daquela equipe é que a gente ficava muito tempo no mesmo time. Não é como hoje, que troca a cada ano. Isso ajudou muito, pois criamos uma amizade quase de irmãos. Éramos uma família.”
Acompanhe a resenha dos campeões brasileiros de 1966:
Insegurança
Enfrentar o Santos, segundo eles, assustava. “Antes de entrar em campo, não pensávamos em nada. Íamos enfrentar o Santos. Era o time de nossos ídolos. Não havia entusiasmo. Ia jogar contra Gilmar, Pelé, Carlos Alberto. Não pensávamos nas consequências. Era a primeira vez que teríamos Pelé pela frente. Além do mais, ninguém dava muita importância, a não ser a torcida do Cruzeiro. Não havia TV, só jornal em preto e branco”, conta Raul.
“Raul tem razão. Pra ser sincero, a gente nem falava que estávamos numa final de Taça Brasil. O Santos era o bicampeão do mundo. Acho que a gente não pensava que venceria. Antes de sair de casa, minha mãe me falou: vê se toma de pouco”, confessa Natal.
Dirceu Lopes também confirma que não havia sonho de vitória. “A gente não tinha ideia do que aconteceria, por isso nem pensava em vitória. A preocupação maior, pelo menos minha, era de não dar vexame. Eles eram nossos ídolos.”
Mas um defensor, Neco, estava confiante. “Nosso time era bom. Tínhamos um bom toque de bola. Eu acreditava que a gente podia vencer. Era só fazer nosso jogo. Tínhamos um entrosamento fantástico. Nossos jogadores de frente eram velozes.”
Procópio pensava como ele. “Sei que seria difícil, mas achava que poderíamos vencer. Tínhamos de ganhar o primeiro jogo. Na época, era uma melhor de três. Sabia também que a chance seria se não houvesse o terceiro jogo.”
Evaldo estava pessimista: “Estamos perdidos. Estamos liquidados. Como vamos segurar esses caras? Vão fazer uns quatro. Era só o que podia pensar”.
Surpresa
No primeiro confronto, no Mineirão, algo inimaginável: termina o primeiro tempo com 5 a 0 para o Cruzeiro. Ninguém acreditava. Nem os jogadores, nem os torcedores.
Raul lembra que desceu para o vestiário com Dirceu Lopes: “Perguntei a ele quanto estava o jogo. Quando ele respondeu 5 a 0, não acreditei e voltei para ver o placar. Aí, disse: é mesmo. E pensei: esses caras estão com muita raiva da gente”.
Começa o segundo tempo e o Santos faz dois, antes dos 10min. “Ih, os caras voltaram nervosos. Acabou”, conta Natal.
“Mas o time se tranquilizou e passou a tocar a bola. Equilibramos a partida novamente. Veio o gol do Tostão. Pronto, era o sinal de que a vitória no primeiro jogo era nossa”, lembra Procópio.
Determinação
Vem o segundo jogo. Para a maioria dos jogadores, a novidade maior, segundo Evaldo, era atuar em São Paulo. “Viajamos de avião, algo novo pra gente. E era para a final. Íamos enfrentar Pelé e o Santos novamente. E eles deviam estar com a gente por aqui, atravessados na garganta”, diz Evaldo.
Era um dia chuvoso. O gramado estava encharcado. “A gente não conseguia tocar a bola e logo o Santos fez 2 a 0”, lembra Dirceu Lopes, que disse que o time foi para o vestiário e a tristeza era grande. Natal lembra que o uniforme estava muito molhado e sujo. A chuteira, molhada, bastante pesada. “Mas não tinha essa de trocar de chuteira ou de uniforme. Era um só. Devia durar pelo menos dois anos. Não podíamos nem sequer trocar a camisa com um adversário. No outro jogo não teria uniforme”, recorda o atacante.
Raul diz que vê dois homens de terno descendo para o vestiário do Cruzeiro e que eles não eram do clube. “Eles conversavam e percebi que falavam em terceiro jogo. Conhecia os dois, pois tinha jogado no São Paulo antes de vir pro Cruzeiro. Eram o Mendonça Falcão, presidente da Federação Paulista, e o Atiê Jorge Cury, do Santos”, recorda o goleiro.
O que ocorre a seguir, no intervalo, dentro do vestiário do Cruzeiro, foi percebido por poucos. Uma cena que Procópio jamais se esquecerá. “Vi o Felício (Felício Brandi, presidente do Cruzeiro) discutindo com os dois engravatados. Ouvi o presidente, aos berros, afirmando: 'O jogo não acabou e não vai ter terceira partida.' Aquilo mexeu com a gente. Estavam duvidando da nossa capacidade”, revela o zagueiro.
Coragem
Na volta para o segundo tempo, a chuva havia parado. “Foi um alívio. Tinha até chovido granizo no primeiro tempo”, lembra Raul. Dirceu ficou entusiasmado, pois a drenagem do gramado era boa e não havia mais poças. “O campo liso era o que queríamos. Poderíamos fazer nosso jogo”, diz o camisa 10.
Pênalti para o Cruzeiro e Tostão perde a cobrança. Mas, logo em seguida, uma falta e o mesmo Tostão faz o primeiro gol. Alguns minutos depois, Dirceu Lopes marca o segundo e empata o jogo.”
O Santos vai com tudo ao ataque mas, no finalzinho, Dirceu pega uma bola no meio e lança Natal, que arranca cortando da direita para o meio e manda um balaço no ângulo esquerdo. Era o terceiro gol do Cruzeiro. O gol que garantiu o primeiro título nacional para a Raposa.
Para Dirceu Lopes, “foram os jogos da minha vida. No Mineirão, fiz três, sofri o pênalti e lancei o Natal. No Pacaembu, fiz um um e dei passe pra outro, além de ter participado dos lances do pênalti e da falta. Nunca, jamais esquecerei esses momentos. Lembro que, antes do fim do jogo, o Pelé xingava todo mundo de seu time. Não queria perder novamente”.
Satisfação
Conquistar o título no Pacaembu, em São Paulo, e acreditar no feito de derrotar o Santos, de Pelé, segundo eles, só foi possível quando chegaram a BH. “Lá, recebemos a taça. Saímos do estádio e fomos para o hotel. Não havia nada de diferente. Só a gente sabia que era campeão”, lembra Procópio.
Mas quando chegaram ao Aeroporto da Pampulha foi muito diferente. “Havia uma multidão, cheio de bandeiras”, conta Evaldo. “Daí, subimos no caminhão do Corpo de Bombeiros com a taça e desfilamos pela cidade. Até ao longo da Avenida Antônio Carlos, onde quase não havia casas do aeroporto até o IAPI, estava cheio”, diz Dirceu Lopes.
Foi aí, segundo Natal, que eles entenderam o que haviam feito: “Pensei lá trás, nos dois jogos. A gente tinha gordura pra queimar do primeiro jogo. No segundo, foi de virada. Demais. Foi quando nos encontramos com a torcida que entendemos o que havíamos feito, a grandiosidade da conquista”.