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Hotel São Sebastião, antiga casa de saúde de mesmo nome onde Heleno foi internado |
Renan Damasceno - Estado de MinasEm 1954, Barbacena respirava o nefasto ar da loucura. Inaugurado em 12 de março de 1903, o Azylo Central de Barbacena, mais tarde chamado de Hospital Colônia, recebia cerca de 3.500 pacientes por ano, registrando média de óbitos acima de 700. O terror, que o psiquiatra italiano Franco Basaglia compararia a um campo de concentração nazista, durou cerca de 80 anos. Série de reportagens “Os porões da Loucura”, publicada pelo Estado de Minas de 18 a 27 de setembro de 1979, revelou atrocidades como experiências e venda de cadáveres, abalando a opinião pública.
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Pátio do hotel São Sebastião |
Além do Hospital Colônia, que atendia indigentes, a cidade tinha quatro clínicas particulares, para pacientes de melhor condição financeira, entre elas a Casa de Saúde São Sebastião, inaugurada em 1948 pelos médicos José Theobaldo Tollendal e Hermont do Nascimento. Depois de internação fracassada no Rio e em Matias Barbosa, a família optou por tratar Heleno no hospital de um amigo de infância, o dr. Tollendal, falecido em maio de 2010. Ele funcionou até 1995, quando deu lugar a hotel de mesmo nome, arrendado pelo empresário Sílvio Pires, de 60 ano, que só pintou corredores e instalou vasos de plantas para mudar o ambiente. A construção permanece intacta: 2.400m de área construída, capacidade para 130 pessoas e 80 quartos para hóspedes, entre eles o de nº 25, onde Heleno passou os últimos anos em devaneios: um espaço de 4m x 3m, sem banheiro, com uma cama e um guarda-roupa.
O pátio onde tomava sol, cercado pela base de pedras e paredes de 5m de altura, silencioso e carregado de clima pesado, já afastou hóspedes que nem sabiam que ali havia sido um hospital. Os quartos 42 e 43, ao lado da sala dos prontuários médicos, não recebem pessoas há anos.
Entre 1952 e 1953, Heleno viveu entre o Rio e São João Nepomuceno, onde era atração: ia ao restaurante do Bar Central, aos bailes do clube Democráticos e jogava sinuca no Bar do Cida, mas já apresentava sinais da doença. O vício ainda o corroía e as receitas médicas que chegavam à Farmácia Oswaldo Cruz eram sempre acompanhadas de um P.S. cifrado: “Dê a Heleno o que o Heleno precisa”. Era éter.
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Na inauguração da iluminação do estádio, Olympic enfrentou o Botafogo, ex-clube de Heleno |
Em maio de 1953, jogou a última partida antes da internação. Com a camisa vermelha e branca de Rochedo de Minas, da cidade de mesmo nome, enfrentou um combinado de Guarani. “Eu era o ponta-direita e Heleno o centroavante. Não ria para ninguém, era grande e glamuroso. Num lance, matou a bola no peito e fuzilou o canto do goleiro. No outro, chutou de fora da área, marcando outro golaço”, recorda Sebastião Mattos, aos 76 anos.
CORROENDO OS NERVOS Para a médica Lucinéia Carvalhaes, diretora clínica do Hospital Eduardo de Menezes, em BH, é possível que Heleno tenha contraído sífilis nos primeiros anos da vida sexual, pois era comum então ter as primeiras relações com prostitutas. Conhecedor das preferências do velho amigo, dr. Tollendal o acompanhava ao campo do Santa Tereza para ver treinos do Olympic. Raras vezes Heleno jogou, mas era chamado para dar o pontapé inicial em partidas festivas. “Ficava sentado assistindo. Mas ao ver um erro, começava a se exaltar e a xingar os jogadores do outro lado da grade. Falava coisas sem sentido e já estava com a feição transtornada”, lembra Danton, de 79 anos, ex-goleiro do Olympic e do Madureira.
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Os irmaos Luiz Galvao e Sebastiao Pereira, proprietários da Tabacaria onde Heleno buscava charutos |
Na inauguração da iluminação do estádio, no fim de 1956, o Olympic enfrentou o Botafogo. Heleno foi visitado pelo ex-time, então treinado pelo ex-parceiro de ataque Geninho. Foi o único encontro com outro gênio atormentado do alvinegro: Garrincha. Sempre ao lado do médico, tomava refrigerante no Bar Colonial e buscava charutos na Tabacaria Minas Gerais, no Centro. “Meu pai falava que ele passava, pegava o fumo, dizia ‘Eu sou o Heleno’ e saía sem pagar”, contam os irmãos Luiz Galvão e Sebastião Pereira, herdeiros da loja. Com mania de grandeza, falava coisas sem nexo. Os tempos de glória ainda o atormentavam. Dizia que a cada gol pelo Boca era obrigado a dar um abraço em Evita Perón, a primeira-dama argentina.
No fim de 1957, Tollendal escreveu a Heraldo: a saúde e a sanidade pioravam rapidamente. Ele havia perdido muito peso, os dentes estavam enfraquecidos e o cabelo caía. Havia passado a ouvir vozes, agir de forma violenta e infantil, comer papel e rasgar roupas com os dentes. Pele enrugada, cabelos ralos e brancos, aos 38 anos, o homem de 1,80m pesava pouco mais de 40kg. Na manhã de 8 de novembro de 1959, ao abrir a porta do quarto com o café da manhã, um enfermeiro encontrou Heleno morto. A ida do corpo para São João Nepomuceno foi tão conturbada quando a vida do mito. Caía verdadeiro dilúvio. Às 15h, perto de Juiz de Fora, o caixão teve de ser trocado de carro, que meia hora depois atolou. Só chegou à cidade às 9h da manhã seguinte. “No velório, um senhor de cerca de 50 anos ficou o tempo todo ao lado do caixão. Devia ser alguém que conviveu com o astro. Depois ninguém nunca mais o viu”, lembra Helenize. O comércio fechou e uma fila seguiu o caixão da casa da família, na Rua Capitão Braz, até o cemitério São João Batista, onde Heleno foi enterrado às 15h, ao lado dos pais e de Heraldo.