Do Palestra ao Cruzeiro: 100 anos do time criado por sua torcida
Sigamos sem medo, pois se há 100 anos eu era apenas alguns, hoje, graças a você, meu filho gigante, me chamam de Nação Azul e sou uma dezena de milhões
O número 100 é marco de história, rito de passagem. Chegada ou respiro para recomeço. Hoje, o 100 é seu, meu Palestra/Cruzeiro. Dia derradeiro de uma centena de anos e nascedouro de outro centenário em pleno início. Passado, presente e futuro. Para sempre.
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Memória e afeto para celebrar o 2 de janeiro de 1921, quando oficializamos o seu nascimento. Fruto de um sonho acalentado por muito tempo. A gestação do embrião de um gigante. Desde os portos italianos ao embalo do além-mar, lhe alimentando na seiva da esperança por um mundo novo. As primeiras batidas de seu coração como tijolos sendo assentados numa cidade em construção. Suas mexidas abruptas numa placenta de periferias, canteiros de obras, balcões e todo canto para onde a oligarquia belo-horizontina preconceituosa empurrava os trabalhadores braçais, fossem eles ex-escravos ou imigrantes italianos.
Na proximidade do 1921, aos seus primeiros chutes ainda na barriga, centenas de pais e mães se amontoaram em pequenos comércios, transformados em maternidade. Eram eu, sua torcida, nascida antes de você.
Na certidão, escreveram... NOME: Società Sportiva Palestra Italia, vinda para o “cultivo do espírito associativo entre italianos, brasileiros e outras nacionalidades”. FILIAÇÃO: Operários, trabalhadoras e comerciantes. Palestra/Cruzeiro, você brotou foi do povo. Chegou ao mundo para ser o time de todas e todos, por natureza de nascimento.
Acompanhei cada passo seu. Dos primeiros, descalços no barro preto de uma terra abençoada, até os doloridos dessa sua velhice centenária. Transformei uma horta em traves e arquibancada de madeira para você correr seu futebol arte. Juntei-me a jogadores-pedreiros para lhe dar o estadinho JK. E quando construíram o Mineirão para você brilhar, cresci sua puberdade junto. Enquanto sua competência rompia a Serra do Curral e colocava o rei de joelhos, eu me derramava por toda Minas Gerais.
Hoje, reviro esse recheado álbum de fotografias numa alegria incontida. O primeiro tricampeonato palestrino. O pavilhão azul, branco e estrelado a impedir a sentença de morte, lançada pela ditadura em 1942. A Academia Celeste de 1966, a máquina estrelada de 1976, as Supercopas de 1991/1992, a tríplice, o tetra, o hexa. Apenas alguns capítulos vivos de um legado de superações e conquistas imbatíveis. De um Palestra/Cruzeiro a quem a maturidade trouxe a missão de apresentar o futebol mineiro ao Brasil, à América Latina e ao mundo. E mesmo quando, dentro dos limites montanhosos do belo horizonte dessa aldeia, os poderosos formadores de opinião desmereceram esses feitos e seu desprendimento de abrir o caminho para os outros, você se manteve respeitoso, honrado e multicampeão.
Fez o mesmo quando a vida lhe colocou pedras pelo caminho. Da xenofobia aos jejuns de títulos. Da sua interminável penúria financeira ao crime de 2019. Da homofobia e inveja monocromáticas às feridas ainda abertas pelo tombo gigantesco.
Ser Cruzeiro é estar do lado bonito e honesto da história, sem desrespeitar, diminuir ou desejar maldades a quem escolheu estar do outro. O hino do Palestra já ensinava isso:
“Saindo do campo/Da nossa vitória/Sabemos a glória/No peito guardar/Não vá nosso orgulho ferir, quem contente/Conosco valente/Soubera jogar”.
“Porque se de fato/Na luta renhida/Tão bela partida/Soubemos ganhar/Não temos conosco/Razão que nos há/De cortar a amizade/E os ódios gerar”.
“E se, porventura/Na luta perdermos/E justo sabermos/Sorrindo calar/Fazendo desporto/Não temos em mira/Nem ódio, nem ira/Mas sim prosperar”.
O cruzeirense não odeia seus oponentes, seu caráter não treme. Ao contrário, ele se agiganta no amor por seu escrete. Exatamente porque você, Palestra/Cruzeiro, sempre foi um filho guerreiro nos gramados, capaz de me deixar feliz, maluco, louco e eternamente apaixonado.
Por todo e sempre, ser Palestra/Cruzeiro é poder sentar à mesa e misturar macarronada e tropeiro. Fazer algazarra, pois da bisavó ao mais recém-nascido da família, para todos eles, você deu alegrias, títulos e páginas heroicas e imortais.
Nessa celebração, se cobre a mesa com o manto sagrado. O alimento é elaborado com a dedicação de todos os Fantonis. A honra familiar se defende como Geraldo II, Raul, Dida, Fábio. Erguer-se a taça para um brinde como Piazza. Derramar-se o molho forte como a falta de Nelinho. Não se cansa de servir aos outros como Nonato, Ricardinho, Zé Carlos, Henrique. Passa-se o tempero com o talento de Alex, Douglas, Boiadeiro. Senta-se lado a lado como Tostão e Dirceu Lopes. O espaguete gira no garfo como a dança de Sorín. Finca-se o torresmo com a firmeza de Azevedo, Vavá, Procópio, Perfumo, Adílson, Cris, Luisão. Na boca sente-se a explosão de sabores como gols de Piorra, Bengala, Alcides, Palhinha, Marcelo Ramos, Geovanni, Everton Ribeiro, Goulart. Tudo termina numa enorme brincadeira como os dribles de Joãozinho e Abelardo.
Por tudo isso, hoje vim lhe dar meus parabéns, com minha voz embargada, orgulhosamente rouca pelos gritos de “campeão”. Dar-lhe um abraço com minhas mãos calejadas no trabalho operário e de tanto lhe aplaudir nas arquibancadas. Fazer-lhe o convite para caminharmos juntos pelo próximo centenário.
Sigamos sem medo, pois, se há 100 anos eu era apenas alguns, hoje, graças a você, meu filho gigante, me chamam de Nação Azul e sou uma dezena de milhões. Portanto, mesmo se lhe restar apenas um corpo velho e cansado, estufe seu peito estrelado com a certeza de que estarei eternamente ao seu lado.