Está lá, no Dicionário Aurélio. Fu.te.bol – substantivo masculino. Jogo esportivo disputado por dois times, de 11 jogadores cada um, com uma bola de couro, num campo com um gol em cada uma das extremidades, cujo objetivo é fazer entrar a bola no gol defendido pelo adversário. Definição mais simplória não poderia haver. O sentido do futebol, em sua essência mais pura e cristalina, é a bola na rede. E ponto. Sem firulas. Não tem coré coré, dizia Kafunga, na tela da tevê, quando eu era bem criança. Apesar da pouca idade, lembro-me claramente dele, com aquelas mãos enormes, gesticulando freneticamente ao discorrer sobre algo que o incomodava. Naquela época, eu não tinha a mais vaga ideia de que um dia seria jornalista. Nem poderia imaginar que cenas como aquela ficariam guardadas em alguma gaveta do meu subconsciente e renasceriam décadas mais tarde, numa quinta-feira qualquer, diante do computador para, como ele, falar de futebol.
Pois ao começar a escrever esta edição de Tiro Livre imaginei como Kafunga comentaria uma partida em que um dos times chuta apenas uma bola a gol em 90 minutos. Pensem bem, cronologicamente falando: uma hora e meia (e alguns quebrados dos acréscimos) de disputa e tão somente uma finalização. Uma conclusãozinha em direção à meta adversária e nada mais.
Imaginei Nelson Rodrigues, e sua escrita afiada, a destilar toda sorte de impropérios contra um pecado capital desses. Justamente na Pátria de Chuteiras? Nelson Rodrigues não deixaria passar em brancas nuvens tal desforra ao futebol. Altamente justificável. Ou então a pena poética de Armando Nogueira, que sabia como pouquíssimos enfileirar críticas da forma mais delicada e sensata possível. Armando Nogueira também não perdoaria o autor de tal heresia. Igualmente o gênio das letras uruguaio Eduardo Galeano. Aposto que ele contestaria, com todo o seu lirismo, tal estatística controversa. Repito: um chute a gol em 90 minutos.
Por si só, o fato leva à reflexão. Mas calhou de ser em um dos templos sagrados do futebol. Que fosse num campinho de terra, já seria sacrilégio, ofensa ao espírito do esporte, às origens celestes, às raízes da Academia. Contudo, foi logo no Maracanã. Onde quer que estejam, Kafunga, Nelson Rodrigues, Armando Nogueira e Eduardo Galeano devem estar olhando meio de soslaio para o técnico do Cruzeiro, Mano Menezes (foto), e questionando: como foi que você permitiu isso?
Vá lá que você tenha preferência em armar bons sistemas defensivos, Mano, e que assim tenha sedimentado campanhas vitoriosas ao longo de sua carreira, inclusive no próprio Cruzeiro – o bicampeonato da Copa do Brasil está aí para provar. Mas também não há futebol sem fome de gol. Não há título sem bola na rede adversária. A defesa pode até ser o cérebro do time, porém, sem um coração pulsante, sem um meio-campo bombeando sangue para o ataque, tudo será em vão.
OK, vamos considerar que tenha sido um acidente de percurso. Fato isolado. Ponto fora da curva e todo tipo de expressão que sirva para atenuar quando algo não sai como planejado. Afinal, não faz muito tempo o Cruzeiro estava bem na temporada, com suas principais peças funcionando em alta rotação. A equipe tem potencial técnico para mostrar mais. Conta com jogadores de calibre para defender e atacar. Mas eis que a receita, de alguma forma, tem desandado. Não dá para contestar.
Para sorte da Raposa, o trem saiu dos trilhos num momento em que efeitos colaterais não têm efeito tão devastador. Há tempo e espaço para a correção da rota. No caso do confronto com o Fluminense, na noite de quarta-feira, no Rio, pela Copa do Brasil, o solitário chute a gol teve destino preciso – foi morar no fundo da rede do tricolor. Tivesse tomado rumo desconhecido, as consequências seriam piores. Mas naquela noite quiseram os deuses do futebol que a única finalização do Cruzeiro valesse mais que dezenas de chances desperdiçadas. Por pouco, não garantiu uma vitória – insolente, mas ainda sim, vitória.
O empate por 1 a 1 no Rio não foi de todo mal. Não é essa a questão aqui. Friamente falando, é um resultado bem recuperável no Mineirão. O grande problema da Raposa foi chutar apenas uma bola a gol em 90 minutos – insisto. Uma blasfêmia em se tratando de um time em que não faltam armadores com expertise para alimentar o ataque e que conta com um homem-gol na área do oponente. Fred tem mesmo precisado de um garçom para auxiliá-lo: já são seis jogos sem balançar a rede. Mas, sem chute a gol, meu amigo, não tem fama de artilheiro que dê jeito.