
O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 2016, registra 45.460 casos de estupro no Brasil. Um outro levantamento, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, revela que apenas 10% dos casos são reportados à polícia – e que as tentativas ou os estupros de fato chegam a 527 mil. Mesmo que se considerem apenas os 10%, atingimos a incrível marca de um estupro a cada 11 minutos, e um estupro coletivo a cada 2 horas e meia. 69,9% das vítimas são menores de 19 anos. Mas os nossos dirigentes acham que o caso de Robinho é “um assunto particular”.
Desde os grandes protestos de 2013, o Brasil vive o embate entre a modernidade e a Idade Média. Conservadores desejam conservar as coisas como sempre foram, a despeito de viver na cloaca do mundo, num dos países mais desiguais do planeta; minorias e maiorias (negros e mulheres) oprimidas desejam romper com o atraso – a tradição escravocrata, racista, machista e corrupta que nos caracteriza e define desde sempre. O Brasil de hoje prende e humilha reitores sem antecedentes criminais, enquanto malas de dinheiro sujo não provam nada. O Brasil criminaliza curadores de museu, enquanto um helicóptero com meia tonelada de cocaína paira sobre as nossas consciências. Pode parecer que a Idade Média triunfará gloriosa, tendo à frente, digamos, um Magno Malta montado em seu cavalo branco. Mas o Belchior é que sabia das coisas: é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem. Ah, se vem!
Em 1908, apenas 20 anos depois de abolida a escravidão, 22 estudantes da elite de Belo Horizonte escolheram fundar um clube em que houvesse negros e brancos, pobres e ricos, homens e mulheres – simbolizados pelas listras de sua camisa, o preto e o branco em condição de igualdade. Era muito mais do que futebol, como gostam de dizer muitos daqueles que agora atacam as “feministas do Galo” por gritarem contra Robinho: o Atlético era o sonho de uma cidade que acabava de nascer, a utopia de um Brasil mais justo e solidário. “Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único. Espero que um dia você se junte a nós, e o mundo será como um só” – o Galo era (e é) Lennon, Gandhi, Mandela, Zumbi, o papa Francisco. O fascismo, como se sabe, jogava em outro time.
Se tivéssemos de eleger uma única pessoa capaz de representar tudo o que somos desde 1908, essa pessoa seria Reinaldo José de Lima (como dizia o Willy, botando o Rei na frente do José). Tudo em Reinaldo nos remete ao Atlético e vice-versa: o sonho, o talento, a alegria, a consciência social, a tragédia, a injustiça, o azar. Se tivéssemos de escolher uma imagem apenas capaz de simbolizar o que somos, seria o Rei com o punho cerrado, símbolo histórico de luta e resistência: podem nos roubar, podem nos torturar e matar, mas nós vamos ficar e resistir. Nós vamos ficar e cantar.
Robinho pode recorrer de sua sentença. Tem o direito mais uma vez de provar sua inocência, e todos torcemos para que o faça. Mas enquanto não o faz, deveria ser afastado, em respeito à história do Atlético e a todas as suas torcedoras, mesmo àquelas a quem falta consciência sobre a luta das mulheres e suas motivações. Um grande clube de futebol é uma instituição que gera cultura, influencia posicionamentos, propaga visões de mundo. Pode apequenar-se ou agigantar-se diante dos desafios que estão além do futebol. Infelizmente, só consigo imaginar nossos valorosos dirigentes reclamando da faixa das “feministas do Galo” instalada em frente à sede esta semana: “O mundo tá chato”. Adoro a resposta que elas têm a esse slogan da Idade Média: “Tá achando chato? Pois vai piorar”. Tomara.