O grande Belchior, um dos maiores poetas que a música popular brasileira já produziu, escreveu linhas de um otimismo subentendido absolutamente perfeitas. Diz ele: "tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro!"
Parece um grande lamento, mas preste atenção, é uma declaração de fé! Uma ode à esperança, uma afirmação poderosa de que sobreviver é ter a certeza de que apesar da dor, do desespero, das lágrimas e até da metafórica morte, existe sempre a possibilidade da resistência. De não aceitar o estado das coisas e lutar para continuar caminhando.
Não, não é fácil. Já falei aqui sobre minha ideia de microciclos. Como cada uma de nossas decisões começa e encerra um pequeno pedaço da nossa vida e de como cada uma delas pode nos levar mais à frente ou mais atrás na busca dos nossos objetivos.
Noutro trecho da canção, o compositor diz: "E tenho pensado comigo, Deus é brasileiro e anda do meu lado. E assim já não posso sofrer, no ano passado".
Que coisa mais linda. Que pedaço de otimismo em forma de verso. Tome Deus (neste caso, literariamente falando) não como a divindade, mas como a representação da nossa capacidade de percepção das multiplicidades do universo. Tenha essa força caminhando ao seu lado.
Claro que isso não elimina a possibilidade de sofrimento. O sofrimento pode nos achar em qualquer curva da vida. Mas o verdadeiro insight, a iluminação, o alívio, como queira chamar, virá quando a gente perceber que não tem como sofrer no passado.
Não vou ser hipócrita. Não atingi esse nível de serenidade. Estou longe disso. E acho que 99% da população mundial, em algum nível, está no mesmo barco. Porque somos uma mistura muito mal equilibrada das memórias e das esperanças. Feliz daquele que pode dizer com absoluta certeza que não se submete ao passado e que é senhor do futuro. Mas eu pergunto, quem aí pode dizer isso de si mesmo?
O passado é a régua com a qual a gente mede nossa expectativa para o futuro. No final, a gente só quer ser feliz, ainda, ou, de novo!
Mais uma vez, nos vale o bom e velho esporte para usarmos como parâmetro. Toda percepção de qualquer conquista ou derrota é medida a partir da régua do que aconteceu antes. Mas a lente com que enxergamos pode variar. Uma sequência de vitórias para um otimista, é uma curva ascendente. Para o pessimista, quanto mais você ganha, mais perto fica de perder, porque ninguém é invencível. É uma balança muito sensível.
Então, quando os ventos mudam, como aconteceu recentemente com os gigantes do futebol mineiro, vem a onda de prognósticos e comparações. O Atlético sofre atualmente porque brilhou no passado recente e perdeu seu encanto sem motivo aparente.
O Cruzeiro vibra porque sofreu de forma quase agonizante e reencontrou seu caminho. E assim, nesse jogo de emoções, a arte (e sim, esporte é uma forma de arte) segue imitando, e às vezes até moldando a vida. Injetando esperança e sofrimento, alívio e desilusão em doses divinamente calculadas para que a gente continue caminhando.
Belchior encontrou alívio definitivo para suas angústias aos 70 anos, serenamente sentado numa poltrona, ouvindo música clássica. Mas como todo poeta, certamente fez o que deveríamos todos fazer. Caminhou apreciando a paisagem, com amor pelo que já viu e com fé no que virá.