De repente, ao ser advertido com um cartão vermelho (injustamente neste caso, se perguntarem minha opinião), o técnico do Cruzeiro saca de seu casaco um gravador e deixa claro para todo mundo: "Não disse nada a ele! está tudo registrado aqui!".
Bem, ninguém se ocuparia de se equipar com um gravador, ou câmera escondida, para registrar qualquer diálogo, se não pensasse de antemão que alguma armadilha poderia estar sendo armada para prejudicá-lo, e assim tratar de produzir contraprovas a qualquer tipo de acusação. Não é um truque novo. Mas é inusitado, pelo menos no futebol. Acho até que ele fez bem. Mas fiquei pensando... quando foi que nos tornamos ciborgues? Seres parte orgânica, parte eletrônica, onde nossos sentidos são tão amplificados, para o bem ou para o mal, a ponto de precisarmos registrar tudo o que fazemos, sob o risco de não ter nossa simples palavra como valor considerado, a menos que esteja gravada, ou filmada?
Pode parar nessa reflexão se quiser. Mas se não... divague um pouco comigo.
Você já ouviu falar em Eric Arthur Blair? não? Vou te poupar uma ida ao google. Eric Blair foi um escritor britânico nascido na índia no início do século XX. Era também jornalista e ensaísta político. Talvez, depois de Júlio Verne, tenha sido o escritor com a obra premonitória mais apurada dos dois últimos séculos. Pelo menos dos que se tornaram razoavelmente famosos. Blair, escreveu entre outras maravilhas "A revolução dos bichos" - onde criticava ironicamente a experiência do socialismo soviético - e o famoso "1984", que descreve uma distopia fictícia à época em que todos eram vigiados pelo "Big Brother - o Grande Irmão" e sua "polícia do Pensamento".
Espere um pouco... 1984? O !!Grande Irmão, "polícia do pensamento", mas isso não é obra de George Orwell ?? - pois bem, são a mesma pessoa! Assim como John Freeman, outro pseudônimo menos famoso (mas mais irônico, porque significa João Livre!) do mesmo autor.
Pois Orwell, ou Freeman, ou Blair... sob qualquer nome, apontou no que viu e acertou no que não viu. Ele concebeu a ideia de uma sociedade controlada pela polícia do pensamento e vigiada 24 horas por dia, com uma cultura pasteurizada e homogeneizada, servida em porções calculadas para manter tudo em seu devido lugar, sem arroubos de criatividade ou rebeldia.
Pois hoje vivemos nessa distopia. O cidadão do século XXI é conectado, pasteurizado e vigiado 24 horas por dia. Um mundo em que qualquer sinal de contracultura é absorvido e colocado a consumo, ou destruído imediatamente caso não esteja voltado à percepção da massa de manobra. Desculpe-me se fui longe demais. Mas se você está lendo até aqui, certamente sabe do que estou falando.
Porém, ele não conseguiu antever do que seria feito o poderoso olho que tudo veria, que estaria nos vigiando física e psicologicamente, controlando nosso pensamento e nosso comportamento. Hoje sabemos, o Grande irmão é a manifestação do nosso próprio comportamento coletivo. Nós nos tornamos o Big Brother. somos vigiados diuturnamente, uns pelos outros, ou o que é ainda mais intrigante, somos nós mesmos quem fazemos questão de colocar nossa vida na vitrine. A chamada rede social nos condicionou a registrar, gravar, expor tudo o que nos acontece, e consumir as miudezas das vidas alheias como se fossem as nossas.
Não vou ser hipócrita e dizer que não faço parte disso. Todos fazemos. Já somos assim. Eu teria a pretensão de tentar dosar a medida, até o ponto onde a mensagem pudesse ser útil a quem porventura se interessasse pelo que eu tenho a dizer. Mas como todo mundo, vez ou outra também sou raso nas tais redes sociais.
A atitude do treinador do Cruzeiro foi sintomática. De um mundo onde infelizmente a palavra de um homem pode valer nada, a menos que esteja gravada, filmada e devidamente viralizada pelo Grande Irmão.