Os carros da temporada 2023 da Fórmula 1 nem foram apresentados e o clima já esquentou na categoria, com ameaças públicas envolvendo a entidade reguladora da categoria, a Federação Internacional de Automobilismo, e sua detentora de direitos comerciais, a Liberty Media. Tudo por conta da divulgação de uma suposta proposta do fundo soberano da Arábia Saudita de compra da categoria.
A matéria sobre o interesse dos sauditas foi publicada pelo site Bloomberg, focado no mundo dos negócios, e fala em uma proposta de 20 bilhões de dólares (equivalente a mais de 100 bilhões de reais) que teria sido rejeitada pela Liberty Media. A empresa norte-americana comprou os direitos comerciais da Fórmula 1 em 2016 em negócio que envolveu 6 bilhões de dólares.
O presidente da FIA, Mohammed Ben Sulayem, logo veio a público para questionar o valor da transação em nome da entidade.
"É aconselhável que qualquer comprador em potencial aplique o senso comum e considere o bem maior para o esporte e surja como um plano limpo e sustentável, e não apenas um caminhão de dinheiro. É nosso dever considerar o impacto futuro para os promotores, em relação às taxas cobradas para receber as provas e custos comerciais, ou qualquer impacto que isso teria entre os torcedores."
Os advogados da Liberty Media, então, enviaram uma carta, que acabou se tornando de conhecimento público, ao Conselho Mundial da FIA, dizendo que qualquer interferência inaceitável no direito de comercialização da F1 poderia resultar em responsabilização legal. Ou seja, se as declarações do presidente da FIA desvalorizarem o esporte, a entidade será processada.
Entenda quem manda na Fórmula 1
Não é de hoje que existe tensão entre a FIA e a Liberty Media, que controla os direitos comerciais da F1 há seis anos. São eles que fecham os contratos com os promotores de GP, com os patrocinadores, com as emissoras de TV, são eles os responsáveis por toda a presença nas mídias sociais e pelo aplicativo F1TV.
São eles que fazem o transporte dos equipamentos. São eles, também, que repassam parte dos lucros às equipes, que estão presas à Liberty por meio de um contrato chamado Pacto da Concórdia, que tem duração até o final de 2025.
A FIA também é signatária do pacto, e também recebe da Liberty para ser a entidade reguladora. Cabe a eles gerirem as regras técnicas, financeiras e esportivas e também prover os serviços de segurança durante os GPs (centro médico e fiscais de pista, etc.). Assim, a F1 tem a chancela da FIA.
Esse equilíbrio entre as forças sempre foi um ponto complicado na F1 e isso tem ficado muito claro desde que a Liberty assumiu. Ao contrário da CVC, empresa de Bernie Ecclestone que tinha os direitos comerciais anteriormente, a nova dona tem uma operação muito maior em termos de funcionários e muito mais ampla, atuando, inclusive, em áreas que seriam funções da FIA.
Um exemplo claro aconteceu no estudo das regras financeiras e técnicas que estrearam nos últimos anos. A Liberty, assim que assumiu, criou um departamento técnico, chefiado por Ross Brawn, justamente para a criação de regras que melhorassem as disputas na pista.
Foram anos em que a Liberty começou a questionar internamente qual era a necessidade de pagar milhões para a FIA para fazer um trabalho que ela mesma poderia fazer internamente. E também entendendo que a Fórmula 1 poderia conviver sem a chancela da federação, como as grandes categorias norte-americanas, por exemplo.
Presidente da FIA sabe que entidade está enfraquecida
Eis que a Liberty foi percebendo que as amarras eram mais fortes do que pareciam, o investimento seria muito alto, e essa ideia inicial foi se enfraquecendo (assim como o tal departamento técnico, que parou de crescer).
Ao mesmo tempo, a FIA teve falhas graves. Da condução da decisão do campeonato de pilotos de 2021 à regra mal escrita que confundiu até as equipes no bicampeonato de Max Verstappen no GP do Japão, os exemplos são muitos e gritantes. Paralelamente a isso, a entidade viu um rombo (fala-se em 60 milhões de dólares) em suas contas no pós-pandemia.
Está claro que a posição da FIA está enfraquecida em todos os sentidos e Ben Sulayem está fazendo de tudo para ser o mais presente possível e testar o poder que a entidade ainda tem. Mesmo se isso significa entrar em brigas sobre piercings e na pré aprovação de manifestações políticas. Mesmo se isso significa se manifestar sobre a venda de um produto que não é seu.
É bem verdade que até isso é complicado na F1. Na época de Max Mosley e Bernie Ecclestone, a FIA, que era presidida por Max, cedeu os direitos comerciais à empresa de Bernie por 113 anos, mas manteve direito de veto no caso de venda. Esse direito nunca foi usado e não é total, mas os detalhes não são conhecidos. Isso ajuda a explicar a resposta dos advogados da Liberty.
Afinal, a F1 está à venda?
Essa talvez seja a parte mais interessante da história. Ao longo do último ano, a Liberty demitiu boa parte de seu efetivo baseado na Inglaterra e vem encontrando maneiras de minimizar ao máximo as viagens, também para cortar custos. E já vinha circulando desde o início da temporada no paddock a informação de que eles teriam oferecido o produto para os sauditas e ouvido um sonoro não.
Isso nunca foi confirmado ou desmentido, assim como a história atual dos 20 bilhões. Mas é bem plausível que isso seja já uma contra proposta. A Liberty comprou a F1 da CVC em 2016 em negócio que envolveu 6 bilhões de dólares.
Mas por que os norte-americanos estariam interessados em se livrar de um produto que vem batendo recordes de lucro? A resposta estaria ligada à diminuição da operação. O investimento da Liberty para fazer o bolo crescer, especialmente na parte de internet, que era surpreendentemente incipiente na era Ecclestone, foi bastante alto e o retorno não acompanhou.
A longo prazo, isso não seria sustentável, então é melhor vender seu produto na alta do que esperar uma queda. E, na alta, quem quiser comprar, vai acabar pagando mais do que deveria.