Durante 27 anos, Tifanny Abreu morreu aos poucos em seu interior, pois se sentia uma mulher encarcerada no corpo de Rodrigo, um potente jogador brasileiro de voleibol, cuja sua carreira profissional na Europa não diminuía a dor que o consumia. Até que decidiu deixar tudo para ser, finalmente, uma mulher.
Ele achou que jamais voltaria às quadras, mas no ano passado se tornou a primeira transsexual a competir na Superliga feminina de seu país e agora quer ser a primeira a ingressar na Câmara dos Deputados, em Brasília.
O lema de sua campanha é "Por que não?".
"Eu me matei por dentro durante 27 anos", conta Tifanny à AFP no terraço de um hotel de São Paulo, entre um ato eleitoral e um momento de lazer.
"Eu queria fazer essa transição minha quando tinha 12, 13 anos porque desde criança já sabia que era uma mulher. Mas nossa falta de informação, nossa falta de hospitais, nossa falta de orientação... Muitas acabam não aguentando a pressão da sociedade que oprime tanto e se suicidam".
Ela sabe disso muito bem. Aguentou até 2012, quando a depressão esteve a ponto de asfixiá-la e decidiu se libertar, embora isso a obrigasse a largar tudo. Na época, era um forte atacante cujo talento o havia levado a jogar também fora do Brasil, em Portugal, na França, na Espanha e na Holanda.
"Deixei uma equipe onde era segundo melhor pontuador da liga [de segunda divisão na Bélgica] para começar uma transição. Eu não podia viver maus naquele corpo, não podia mostrar que era um homem, quando eu era uma mulher. Eu já não aguentava sentir vergonha de mim mesma", conta a agora jogadora do Bauru, clube do interior de São Paulo.
Ele se submeteu à sua primeira operação, após meses tomando hormônios. Depois disso, viriam mais cirurgias - a última em maio na Espanha para afinar suas formas -, que ela vive como uma vitória.
- "Bomba" -
Esse complexo caminho, que teve que percorrer sozinha, a motivou a entrar na política. Há alguns meses nem sequer sabia o que era o MDB, poderoso partido de centro-direita pelo qual se candidata a deputada.
Prestes a completar 34 anos e profundamente religiosa, ela sente que sua experiência pode ajudar no país onde mais se mata trans no mundo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), que contabilizou 179 mortes em 2017.
"Quando eu recebi essa proposta do Brasil, para vir para cá, muita gente me falava para não vir porque o Brasil é um país que muito discrimina, um país que mata, mas graças a Deus nós estamos mudando, e mudando para melhor".
Seu retorno, contudo, foi uma "bomba".
Depois de dez anos na Europa, o Bauru a contratou amparado na legislação do COI, que permite que atletas transsexuais participem nas ligas femininas se sua testosterona estiver abaixo de 10 ng/L. A de Tifanny, após anos de tratamento, estava. E ela aceitou o desafio.
Sua chegada ao vôlei feminino foi acompanhada por várias denúncias sobre as supostas vantagens dessa imponente jogadora de 1,92 m. Mas Tifanny - que tem 23.200 seguidores no Instagram - nunca hesitou e até expressou seu desejo de ser convocada para a Seleção.
"Se eu estou protegida pela lei, por que eu vou estar preocupada com que algumas pessoas estão falando?", questiona, afirmando se sentir como Neymar, criticada pela inveja.
Após a sua estreia, não demorou a bater o recorde de pontos em um partido da Superliga (39, igualado depois).
"Sempre fui muito boa pontuadora, mas agora a força é de uma mulher, não de um homem. Se eu tivesse a força de antes, não faria 30 pontos, mas 6.000", justifica.
- "Pelo amor de Deus!" -
Parte da comunidade LGBT não entendeu por que ela se filiou ao MDB - partido de reconhecidos políticos conservadores, como o presidente Michel Temer - para concorrer às eleições de 7 de outubro.
Ela explica que seu retorno ao Brasil foi facilitado pelo Bauru, uma equipe financiada pela federação da indústria, com forte influência do MDB.
"Eu não tenho essa coisa contra partidos, tenho com pessoas. Eu fui incluída e eu quero incluir, se eu quero inclusão tenho que incluir", argumenta.
Tifanny é das poucas que não pertence a um partido de esquerda entre as 53 candidatas trans - nove vezes mais do que há quatro anos - que concorrem nessas eleições.
Ela sabe que se chegar a Brasília, um universo tradicionalmente pouco diverso e machista, não será fácil se integrar. Mas ela não sente medo, por contar com o apoio de sua mãe, dona Amália, que exigiu somente uma coisa para dar a sua bênção.
"Minha mãe me disse: 'Pelo amor de Deus! Não roube o povo como esses políticos que nos causaram tantos danos'", lembra com um sorriso.
Ela deu sua palavra que não faria isso.