Passados 50 anos da epopeia que levou a Seleção Brasileira ao tricampeonato mundial no México, a retransmissão de seus seis jogos pela TV comprova para o experiente jornalista de hoje a impressão captada pelos olhos do então adolescente na Belo Horizonte de 1970. O futebol estava ali em toda a sua essência: talento, organização, movimentação, velocidade, posse de bola, imposição de ritmo... Sem contar o repertório de lances de maravilhar o mais frio dos observadores.
Havia algo do carrossel da Holanda de 1974. Do tiki-taka do Barcelona, e em consequência a Seleção Espanhola de que o conjunto catalão era base; até porque Pep Guardiola é devoto do estilo brasileiro exibido em gramados mexicanos. Do vertiginoso Liverpool de Jürgen Klopp. Enfim, o Brasil que deslumbrou o planeta há cinco décadas representa uma síntese do futebol moderno. Ainda que meio século tenha se passado - com a evolução do preparo físico, do material de jogo e da tecnologia.
E por que aquele timaço simboliza essa modernidade?
Primeiramente, a escolha de João Saldanha em 1969 para comandar um escrete desacreditado desde que, envelhecido em idade e concepção de jogo, caiu na primeira fase no Mundial de 1966. Meio que para se livrar das críticas da imprensa, o presidente da Confederação Brasileira de Desportos, João Havelange, desafiou o mais badalado dos comentaristas a assumir o cargo de que Vicente Feola e Aymoré Moreira já não mais davam conta. Treinador do Botafogo campeão carioca de 1957, e por isso nem tão estranho no ninho assim, o inteligente e carismático Saldanha resgatou a autoestima do time, que venceu os seis jogos das Eliminatórias.
Classificado o Brasil, Saldanha requisitou ao capitão Lamartine Pereira da Costa, estudioso do tema, um trabalho científico sobre como a equipe poderia se comportar na altitude de cidades mexicanas, com jogos ao meio-dia. O documento foi tão criterioso que sobreviveu à queda de Saldanha - mais em consequência do temperamento do que tudo.
Aí entra outro fator do sucesso: o acaso, presente em todo grande time da história. Zagallo era a terceira opção da CBD. Com a recusa de Dino Sani, treinador do Corinthians, e Otto Glória, que levara Portugal ao terceiro lugar em 1966, o técnico do Botafogo assumiu o comando. Adepto do 4-3-3, com ponta-esquerda recuado (replicando o papel que tão bem executara no bicampeonato mundial em 1958 e 1962), Zagallo decretou que Paulo César seria o camisa 11 e Roberto o centroavante %u2012 seus jogadores no ótimo Botafogo. Ou seja, com Tostão na reserva de Pelé. Isso se o titular e artilheiro das Eliminatórias fosse ao Mundial, pois convalescia de cirurgia para correção de deslocamento na retina.
Num coletivo em que Baldochi se contundiu, o volante Piazza quebrou o galho na zaga e deu qualificação à saída de bola. No amistoso com a Bulgária, um 0 a 0 em 26 de abril, Paulo César sofreu uma das maiores vaias da história do Morumbi. Pelé ficou no banco, para que Tostão, liberado pelos médicos, fosse observado. Zagallo, atento a tudo isso, era teimoso até certo ponto.
No dia seguinte, em reunião no quarto de Pelé na concentração no Rio, o Rei, Gérson e Carlos Alberto convenceram o técnico a testar Piazza na zaga, Tostão no ataque e Rivellino de falso ponta-esquerda no último amistoso antes do embarque, contra a Áustria, dia 29, no Maracanã. Com atuação convincente, o Brasil venceu: 1 a 0, gol de Rivellino.
O Brasil desembarcou em 2 de maio no México. Nas quatro semanas seguintes, apurou o preparo físico em Guanajuato (2.012m) e Irapuato (1.730m). Duas ocorrências definiram de vez os titulares: o corte do ponta-direita Rogério, contundido, e o deslumbramento do lateral-esquerdo Marco Antônio em seus 18 anos. Com o correto Everaldo na lateral e Jairzinho na ponta, estava pronta a Seleção para buscar o tri.
Zagallo teve duas conversas à parte. Com Jairzinho, disse que confiava no atacante em função diferente da que executava no Botafogo. A Tostão, perguntou se este se sentia capaz de se sacrificar como centroavante, pegando pouco na bola e abrindo espaços para Pelé e Jair. O craque respondeu que se espelharia no que fazia Evaldo no Cruzeiro.
O sucesso tático, possível pelos fatores mencionados, compensou o desequilíbrio do elenco a partir das improvisações (três quarto-zagueiros, três centroavantes, três pontas-esquerdas, nenhum reserva para a ponta direita nem para a armação). Se no 1 a 0 sobre a Inglaterra isso não se sentiu (Paulo César substituiu bem o contundido Gérson), no 3 a 2 contra a Romênia foi problema: com Rivellino também fora, Piazza foi adiantado para o meio-campo e Fontana entrou na zaga. Que não esteve firme.
O Brasil cantado e prosa e verso - Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson e Rivellino; Jairzinho, Tostão e Pelé %u2012 só jogou junto três vezes: estreia (4 a 1 sobre a Tchecoslováquia), semifinal (3 a 1 diante do Uruguai) e final (4 a 1 em cima da Itália).
Na quarta-de-final (4 a 2 no Peru), Marco Antônio substituiu Everaldo. Nos cinco jogos de Guadalajara e no da Cidade do México (a decisão), o bem preparado time marcou 12 de seus 19 gols no segundo tempo, quando sobrava, e virou dois com autoridade (o primeiro e o quinto). Deu show de movimentação, troca de passes, contragolpes em velocidade e compactação. Construiu lances dignos de qualquer antologia de grandes momentos do futebol.
O último gol da epopeia foi um retrato perfeito do conjunto: sete jogadores participaram da jogada em que o capitão Carlos Alberto fechou a conta contra a Itália no emblemático 21 de junho. A Seleção Brasileira de 1970 permanece como a melhor síntese do que há de melhor no futebol. Por isso merece para sempre todas as honras.
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