São Januário é um território hostil e o torcedor do Vasco, certo ou errado, se orgulha disso. Historicamente o clube é forte em casa e o estádio, de fato, tem um clima pouco convidativo ao time - e, às vezes, a torcida visitante. Mas, na noite da última quinta-feira, o pós-jogo teve um ambiente pesado e violento para o próprio time, imprensa e até a própria torcida. Isso tudo com uma grande contribuição da atuação da Polícia Militar.
Desde a última semana, quando foi confirmada a permanência do técnico Maurício Barbieri, mesmo depois da derrota para o Inter, no Beira-Rio - na ocasião, a quinta seguida -, se sabia que o clima em São Januário para o jogo contra o Goiás não seria outro. Quem frequenta São Januário e conhece minimamente a torcida do Vasco sabia disso. A raiva reprimida em anos de derrotas, descaso e humilhações, uma hora se rebelaria.
Sem julgamentos se isso é certo ou errado, mas era claro e evidente que isso aconteceria. A imprensa que cobre o Vasco sabia, o torcedor sabia, o clube sabia e a Polícia sabia. O que aconteceu depois da goleada sofrida para o Flamengo, com a depredação da fachada de São Januário, foi um ensaio para o que se viu depois do jogo com o Goiás. Mais do que um ensaio, foi um alerta.
A torcida do Vasco, tão conhecida pelo apoio ao time mesmo em momentos difíceis, mesmo com cinco Séries B em 15 anos, cansou. Aliás, o próprio clássico com o Flamengo foi um exemplo disso. Com o 4 a 0 antes do intervalo, muitos torcedores já deixaram o estádio. A percepção foi de que os torcedores se dividiram em dois grupos: o que abandonaram e os que se revoltaram. Ainda assim, os vascaínos esgotaram os ingressos para o jogo com o Goiás. E todos sabiam o que poderia acontecer.
Esquema especial de segurança para quem?
Tanto sabiam que clube e Polícia Militar organizaram um "esquema especial de segurança", como a própria PM chamou, para a partida contra o Goiás. Mas quem conhece o trabalho da Polícia Militar do Rio de Janeiro, especialmente no trato com grandes multidões - seja em estádios ou manifestações, por exemplo - também sabia que a ação dos militares poderia piorar ainda mais a situação, que já seria ruim. E foi isso que aconteceu. A sensação de quem acompanhou a confusão, literalmente, de camarote, era que os torcedores do Vasco acenderam o fósforo e a PM, ao invés de apagar, jogou gasolina em cima.
E explico a parte do "camarote" e como isso é mais um exemplo das tantas coisas que estão erradas no Vasco e em São Januário. Já há alguns anos, com o estádio claramente defasado em estrutura, parte da imprensa passou a ser alocada em camarotes do estádio. Esses espaços ficam em cima da arquibancada, na "ferradura" da Colina. A distância para onde ficam os torcedores - incluindo as organizadas - é pequena. Quem quer, pode facilmente passar de um lado para o outro. E isso foi um fator determinante para o caos que foi instaurado na quinta-feira.
Vasco deixou torcedores, imprensa e adversários abandonados
Após dois sinalizadores (os famosos "piscas") arremessados no campo, muitos copos e latas, e um rojão solto ainda na arquibancada, a PM respondeu com bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta e balas de borracha. A confusão que estava concentrada e um dos lados da ferradura se espalhou por toda arquibancada, sociais, camarotes e, depois, para o lado de fora do estádio.
Enquanto parte da imprensa que estava no camarote tentava filmar a confusão, um grupo de torcedores passou a intimidar os jornalistas para que não filmassem. Com ameaças de agressões físicas e tentativa de invasão do camarote, esses vascaínos tentaram censurar o trabalho da imprensa. E, de certa forma, conseguiram. A falta de segurança no local - por falta de organização do Vasco - fez com que parte dos jornalistas saísse do camarote.
Ao mesmo tempo, torcedores que tentavam fugir do gás de pimenta conseguiram invadir um camarote ao lado. O espaço estava fechado e a porta foi quebrada para que conseguissem acessar o corredor. Nesse momento, o caos foi instaurado no local. Os torcedores que tentaram intimidar a imprensa também acessaram o espaço e passaram a "caçar" jornalistas e fizeram novas ameaças, para que não filmassem nada.
Isso tudo sem nenhum sinal de reforço na segurança por parte dos funcionários do Vasco ou da PM. Alguns camarotes ao lado, dirigentes e integrantes da comissão técnica do Goiás, que também foram ameaçados, precisaram se deitar no chão para se esconderem.
O Vasco deixou os próprios torcedores (esses, há anos), imprensa e representantes do clube adversário a própria sorte. Os dirigentes do Goiás só deixaram o camarote meia-hora depois do fim do jogo, quando policiais militares chegaram no setor para fazer a escolta do grupo. Isso tudo quando o corredor dos camarotes já estava parcialmente vazio e apenas alguns poucos jornalista permaneciam no local.
O que aconteceu em São Januário neste 22 de junho, que ficará marcado, não surpreendeu ninguém. Tudo isso foi construído ao longo dos últimos anos pelo próprio clube. É claro que nada isenta de culpa os indivíduos que começaram a arremessar objetos, como copos e latas, no gramado antes mesmo do jogo acabar.
Da parte dos torcedores, isso faz parte da sensação de vale-tudo no estádio, que é ainda mais reforçado em um local pouco cuidado e com sinais de abandono. "Se ninguém cuida, por que eu vou cuidar?", deve pensar o torcedor. E, não, o torcedor que faz isso não acha que fazendo isso o time vai ganhar o próximo jogo. Pensar que o torcedor acredita nisso é ingenuidade ou desconexão com a arquibancada.
Mas, voltando ao "ambiente hostil", o Vasco conseguiu transformar um ambiente que antes era favorável ao time em uma panela de pressão. Uma hora iria explodir. E o clube fez muito pouco ou quase nada para evitar isso. E ainda deixou desprotegidos jogadores, árbitros, imprensa e, principalmente, os próprios torcedores.