Enviado especial a Sete Lagoas

Muita gente continua a trabalhar depois da aposentadoria por necessidade. Mas no caso do goleiro Gomes, isso ocorreu por prazer e gratidão mesmo. Com carreira vitoriosa tanto no Brasil, onde conquistou a Tríplice Coroa com o Cruzeiro, quanto no exterior e na Seleção Brasileira, o atleta de 40 anos voltou às atividades depois de convite do Democrata, de Sete Lagoas, que a partir do sábado disputa o Módulo II do Campeonato Mineiro.

Realizado profissional e financeiramente, o camisa 1 não precisaria se submeter à rotina de treinos pesados, dieta adequada e ao deslocamento quase diário de Belo Horizonte à cidade distante cerca de 75 quilômetros da capital. Mas aceitou o convite da diretoria do Jacaré, onde deu os primeiros passos como atleta, antes de se tornar profissional.

"A realidade atual é incomparável com qualquer outra fase da minha carreira. Estou aqui por gratidão mesmo", afirma o mineiro de João Pinheiro, que morou em outras cidades do estado, até a família se estabelecer em Sete Lagoas, onde estão os 11 irmãos.

Das categorias de base do Democrata, ele acabou chegando ao Cruzeiro e, no fim de 2002, se aproveitou de um vácuo e ganhou a posição no profissional. A partir de então, alçou voos cada vez mais altos, conquistado títulos como o Campeonato Brasileiro, a Copa do Brasil e a Copa Sul-Minas, até se transferir para a Europa, em 2004, para defender o PSV-HOL.

Já tinha o apelido de "homem-borracha" pela elasticidade e, em território europeu, foi cada vez mais aprimorando o dom de fechar o gol. Tetracampeão holandês, foi para a Inglaterra em 2008 defender o Watford, passando por cerca de seis meses também pelo Hoffenheim-ALE. Na Seleção Brasileira, foi campeão das Copas Américas de 2005 e 2009, além de ter sido convocado para a Copa do Mundo da África do Sul'2010.

Tinha a possibilidade de renovar por mais um ano com o Watford, mas em setembro decidiu encerrar a trajetória nos gramados para voltar ao Brasil, ficando perto da família e captando atletas para clubes do exterior. A aposentadoria, porém, não durou tanto. Há menos de um mês, aceitou o convite para defender o Jacaré.

"Espero que alguns dos garotos daqui e da cidade me tomem como exemplo. Nem todos vão conseguir atingir os objetivos, mas eles não podem deixar de sonhar. Têm de buscar o que desejam sempre. Procuro sempre passar o que vivi para todos", afirma Gomes, com a experiência de quem viveu 16 temporadas no futebol europeu.

A decisão de voltar à atividade profissional, afirma, se deve ao fato de estar se sentindo bem fisicamente. Para isso, além das atividades no clube de Sete Lagoas, conta com a assistência de um preparador profissional em Belo Horizonte, o que ajuda a manter a forma. Pelo acordo feito, ele não é obrigado a participar de todos os treinos do Democrata. E não sabe se vai ficar até o fim do Módulo II, pois desenvolve outras atividades.

"Quando parei, desejava voltar ao Brasil por um tempo. Me tornei intermediário de jogadores, mas resolvi parar porque acho que posso ajudar o Democrata. O clube conta com pessoas que lutam pelo melhor, como o Renato (Paiva, presidente) e o Paulinho Guará (treinador). Tive de cancelar minha inscrição na CBF, repassar contratos, mas acredito que tenho uma contribuição a dar ao clube e à cidade", declara.

O certo é que, enquanto estiver em atividade, pretende dar o máximo, como sempre fez ao longo da vitoriosa carreira. "Como não posso estar todos os dias (nos treinamentos), tenho de estar mais comprometido ainda com o projeto. Fazer bem feito ou mal feito é o mesmo trabalho. Então, tenho de fazer bem feito. O treinamento é o mesmo, o treinador de goleiros não alivia para mim porque tenho 40 anos. O ritmo é o mesmo dos outros goleiros", diz.

A boa vontade em ajudar o Democrata não impede Gomes de notar as diferenças entre o que viveu nas últimas duas décadas e o que vai encarar no Módulo II. Saem campos perfeitos da Premier League, por exemplo, e é hora de encarar gramados esburacados do interior de Minas.

"Como disse, é outra realidade. Mas vamos em frente para tentar colocar o Democrata na elite do futebol mineiro'', afirma ele, que, além do Betim, adversário da estreia, vai encarar Aymorés de Ubá, Democrata-GV, Guarani, Ipatinga, Nacional de Muriaé, Serranense, Tupi, Tupynambás, União Luziense e Villa Nova na Segunda Divisão estadual.

A contratação de um atleta como Gomes pelo Democrata-SL vai além do retorno técnico e do marketing. Ele chama a atenção do público, obviamente, mas também pode ajudar bastante na formação de outros goleiros e ser fundamental para o crescimento de jogadores de outras posições, por ser referência na profissão.

"É um privilégio treinar ao lado de um profissional como o Gomes, uma inspiração a cada dia de trabalho. A gente vem aprendendo com ele dentro de fora de campo. Ele tem muita experiência e nos dá excelentes conselhos sempre", afirma Zé Carlos, de 26 anos, um dos reservas do ex-goleiro do Cruzeiro e da Seleção Brasileira.

Outro arqueiro que tem procurado absorver o máximo do experiente companheiro é Vinícius, de 21. "Ter um goleiro como o Gomes aqui é muito bom. Cada dia aprendo mais e mais com ele. Estamos aproveitando ao máximo a convivência", diz ele.

Já Heitor, de apenas 18 anos, tem motivos extras para se inspirar. Assim como o companheiro quarentão, ele não teve muitas chances nas categorias de base de clubes que disputam as principais competições e procura assimilar tudo que pode com o ex-jogador do Cruzeiro.

"Tento aprender olhando, vendo posicionamento, movimentos, e também escutando. Ele conversa bastante comigo, vai me passando dicas, conselhos. Fico até mais animado para vir treinar quando lembro que ele estará aqui", diz o aspirante a goleiro, depois de mais um dia de treino ao lado do ídolo e sob o comando do preparador Alyson Jander.

Para Gomes, o importante é que cada jogador, não só os goleiros, busquem o melhor a cada dia. "Nem todos vão chegar ao nível do futebol europeu, mas aqui é um passo para realizar sonhos. Cada um vai alcançar o seu. Espero ser espelho para eles. Nada é impossível para quem sonha", diz.

Gomes não é o único jogador de peso que disputará o Módulo II do Campeonato Mineiro. O Betim, por exemplo, teve como principal contratação o volante Leandro Donizete, de 39 anos, campeão da Copa Libertadores'2013 e da Copa do Brasil'2014 com o Atlético. O jogador iniciou a carreira na Ferroviária-SP e passou também por Coritiba, Santos e América. O último clube dele foi o Londrina, no ano passado. "Estou acostumado a jogar Campeonato Mineiro, já rodei muito pelos estádios do interior, sei que não tem jogo fácil. Mas já notei que temos um grupo muito bacana, caras rodados e promessas também, o que é sempre uma mescla importante. Temos tudo para fazer uma grande competição e conquistar o tão sonhado acesso", afirma. Ele terá como companheiro o também experiente Gérson Magrão, de 36 anos, revelado pelo Cruzeiro, com o qual foi campeão mineiro de 2009.

O início meteórico no Cruzeiro marcou o clube na vida do goleiro Gomes para sempre. Por isso, é impossível ele não se posicionar sobre a situação do clube, que caiu para a Série B do Campeonato Brasileiro em 2019 e patina pelo segundo ano seguido ao tentar o acesso.

"Ninguém, mas ninguém mesmo, poderia imaginar que um gigante como o Cruzeiro estaria em uma situação como esta. Há três anos, foi bicampeão da Copa do Brasil. Nem os atleticanos imaginavam, pelo histórico do time. Mas doeu, e dói o coração, pois é um time que ajudei a construir. Claro que já era grande, um dos mais maiores, mas foi com a campanha de 2003 que houve a afirmação. Não julgo ninguém, até por estar longe, mas pessoas sem amor ao clube fizeram chegar a esta situação, da qual não vejo solução", opina o goleiro.

Para ele, é preciso agregar quem realmente gosta da Raposa para tirar o clube do buraco. "Se não tiver projeto sério, de confiança, não vai. O plano é deixar pessoas que amam o clube, desde que capacitados, cuidem. Tem de preocupar com cada centavo gasto. O presidente, pelo que vejo, está tentando, mas, pelo que vejo, se poço tem fundo, chegou."

Gomes reforçou os cofres celestes em 2004 ao ser vendido ao PSV, da Holanda, por 1 milhão de euros, o que hoje equivale quase a R$ 6 milhões. Quatro anos mais tarde, foi negociado com o Tottenham, da Inglaterra, por cerca de sete vezes mais.