Coordenador dos Arquivos Históricos do Granbery, Ernesto Giudice sobre a partida de 1893: 'Foi, inegavelmente, um acontecimento histórico que marcou época' (Foto: Euler Júnior/EM/D.A Press)



Eduardo Murta/Enviado especial
Juiz de Fora – Se essa cidade da Zona da Mata mineira está de fato entre as primeiras a promover uma partida de futebol, por que não invocar seu pioneirismo? Para historiadores, que não questionam a relevância de Charles Miller, parece consensual a tese de que seu maior mérito foi “sistematizar” a atividade, que anteriormente pipocou, sem prosperar instantaneamente, em Minas, no interior de São Paulo e no Rio de Janeiro.





Há estudiosos que, sem trocadilho, parecem não dar muita bola para essa aparente injustiça. “O futebol association, o campo regulamentar, o 11 contra 11, isso tudo vem com o Charles Miller mesmo, não tem como negar”, afirma o historiador José Moraes Neto, da PUC-Campinas, autor de Visão do jogo – Os primórdios do futebol. “Mas o jogo em si, a bola, a disseminação em escolas, nas fábricas, isso é anterior a ele”, defende, invocando o papel fundamental das escolas jesuítas nessa disseminação.

O script se repetiria em mais de uma região: o dirigente de colégio que passou pela Inglaterra, conheceu o esporte e desembarcou de volta ao Brasil com bola e livro de regras, como ocorreu com o reitor John McPhearson Lander em Juiz de Fora. O que falta no município mineiro é a chamada materialidade histórica: não sobraram bolas, uniformes e chuteiras, nem há registro do placar, ainda que estejam lá as descrições no livro de notas do Granbery e no jornal O Pharol.

“É inegável que em Juiz de Fora foi introduzida essa prática esportiva. Não sei se cabe reivindicar paternidade. Se não há registro do campo delimitado, estruturado, fato é que foi, inegavelmente, um acontecimento histórico que marcou época”, defende Ernesto Giudice, que há 25 anos pesquisa e ajuda a preservar a história da instituição metodista implantada ali em 1889.



O Sport Club, de Victor Serpa (com a bola), primeira equipe de Belo Horizonte (Foto: Arquivo Abílio Barreto)



O reitor Lander: papel precursor (Foto: Arquivo Colégio Granbery)

NA CAPITAL O historiador Raphael Rajão, de 33 anos, estudioso da origem do futebol em Belo Horizonte, reforça o conceito de que existia uma dinâmica ligada especialmente a estudantes e suas escolas na difusão da modalidade. Como na capital mineira, em 1904, quando o carioca Victor Serpa, aluno de direito que já havia passado pela Suíça, fundou o Sport Club, primeiro time local. “Aqui se repete o modelo a partir de estudantes que tiveram a experiência no exterior”, descreve.

Rajão está entre os pesquisadores que preferem o foco no fenômeno, e não na personalização. Reconhece o papel de Charles Miller na prática sistematizada (“O mérito talvez esteja por aí”), como o de Serpa, ao difundir o futebol em Ouro Preto e depois em BH. Mas pondera, citando o caso da capital mineira, que o futebol aportaria na cidade de qualquer forma. “Na história, a figura do Victor Serpa de nada adiantaria se não houvesse outras figuras. Era um movimento que já estava acontecendo. Chegou pelas mãos deles, mas estava para além disso”, afirma.

A bola, então, rolou no começo de outubro de 1904, no Parque Municipal, com duas equipes formadas por integrantes do Sport. E o Minas Geraes, órgão oficial, noticiou: “Ante-hontem foi disputado mais um match de football no campo desta novel sociedade, perante tão numerosa quão fina roda de distinctos sportsmen e gentis sportswomen”. De tirar o chapéu.



Pegando de primeira

Charles Miller é considerado o pioneiro do esporte em terras brasileiras (Foto: Arquivo EM/D.A Press)

Naquele domingo, um 14 de abril de 1895, a cena soava um tanto prosaica. Aos 20 anos, Charles Miller (1874-1953) estava se transformando numa espécie de marco do futebol brasileiro. Mal o sabia. “Ao chegar ao capinzal, a primeira tarefa que realizamos foi enxotar os bois da Cia. Viação Paulista, que tosavam a relva pacificamente”, descreveria em 1942 ao jornal Gazeta Esportiva o filho de imigrante escocês e uma brasileira de ascendência inglesa nascido no Brás, em São Paulo.

A partida em que marcou dois gols pelo time vencedor, nos 4 a 2 do São Paulo Railway sobre a Companhia de Gás, reuniu majoritariamente ingleses radicados no Brasil. Em 1894, Miller havia retornado ao país depois de passar 10 anos na Inglaterra, onde conheçou o futebol na Bannister Court School, como indica o espanhol John Robert Mills no livro Charles Miller – O pai do futebol brasileiro.

Na bagagem, duas bolas da marca Shoot, fabricadas em Liverpool, dois uniformes, uma bomba de ar e um livro de regras. Meses depois, os amigos se espantaram com o convite para ir a campo. “Aquele nome, por si só, era novidade, já que só conheciam o críquete. Perguntaram como era o jogo e com que bola se jogava. Eu tinha a bola, só era preciso enchê-la”, contou em entrevista à revista O Cruzeiro em 1952.



O duelo foi disputado no Brás, na Várzea do Carmo, entre a Rua Santa Rosa e o Largo do Gasômetro, uma área de São Paulo posteriormente tomada pelo comércio. “Alguns dos companheiros jogaram mesmo de calças compridas, por falta de uniforme adequado”, contou o pioneiro.

De acordo com Mills, Charles Miller tinha um estilo de jogo “malandro”, que marcaria o futebol brasileiro. Foi tricampeão paulista entre 1902 e 1904 pelo São Paulo Athletic Club – artilheiro por duas temporadas. Jogou no clube até 1910 e, aos 36 anos, encerrou a carreira. Atuaria como árbitro até 1916. Morreu em 1953, aos 79 anos.

Três perguntas para Heglison Toledo (Doutor em educação física)
Autor da dissertação O futebol no Brasil antes de Charles Miller – o caso do Instituto Granbery de Juiz de Fora no marco de 1893, o professor Heglison Custódio Toledo, de 41 anos, é um dos defensores da teoria de que a cidade da Zona da Mata está entre as precursoras da difusão do esporte bretão no Brasil. Doutor em educação física, ele não ignora Charles Miller como referência, mas sugere que antes a bola rolou em outros campos do país.



Juiz de Fora foi pioneira ou podemos dizer que plantou sementes para disseminar o futebol no Brasil?
Houve uma espécie de geografia histórica naquele período, em que o futebol começou em vários pontos do país. E Juiz de Fora foi uma dessas cidades. Dizer que ela plantou uma das sementes fica mais adequado. A história real não fica restrita a Charles Miller, mas seus méritos são inegáveis: foi responsável por difundir a prática e propagá-la de forma organizada.

No caso de Juiz de Fora não há citações sobre demarcação de campo, súmula, uniforme? A atividade pode ser considerada um jogo?
Os registros de Lander indicam que sim. Além disso, no jornal O Pharol encontramos um texto de 23 de junho de 1893. Está lá o convite para a atividade.

Por que Juiz de Fora, afinal, não reivindica pioneirismo?
Talvez, mais importante que reivindicar esse pioneirismo seja compreender a relevância do fenômeno, principalmente porque ele não ficou restrito ao futebol, mas envolveu outras modalidades, como a ginástica, que mais tarde, em 1920, cederia atletas para os Jogos da Antuérpia.



Um time de pais
• Se a bola rolou na China e no Japão há mais de 2 mil anos, passou pelos gregos antigos, pelos romanos e se firmou na Itália, foi a partir da metade do século 19, na Inglaterra, que o futebol ganhou o formato e regras próximos do atual

• No Brasil, são relatados jogos entre alunos do Colégio São Luís, em Itu, em 1872, com os padres jesuítas, no Colégio Anchieta, de Nova Friburgo, em 1886, e no Estadual D. Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1892

• Em 1874, marinheiros britânicos teriam disputado uma partida nos jardins da residência da princesa Isabel, no Rio de Janeiro, onde hoje fica a Marina da Glória

• Alunos do Colégio Granbery, de Juiz de Fora, participam de uma partida entre Gregos e Troianos em 24 de junho de 1893, conforme registro abaixo.

• O terreno ao lado da fábrica de tecidos Bangu, no Rio de Janeiro, teria recebido uma partida em setembro de 1894, liderada pelo escocês Thomas Donohoe

• Filho de pai escocês e mãe brasileira de ascendência inglesa, Charles Miller promove em 14 de abril de 1895, em São Paulo, o que é tido, formalmente, como o primeiro jogo de futebol no Brasil
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