Flamengo e Fluminense vão medir forças nesta quinta-feira, no Maracanã (Foto: Iconsport)

No filme Fla x Flu - 40 Minutos Antes do Nada, de Renato Terra, o lateral Leandro, craque incontestável do Flamengo e dono do mais autêntico apelido de jogador em todos os tempos – Peixe Frito –, é perguntado sobre o rival Fluminense ser uma pedra no sapato mesmo num período de tantas conquistas, inclusive o Mundial.




- Com certeza. A gente se preparava tanto para ganhar do Fluminense que quando não conseguia era uma decepção muito grande. 

Assim são as rivalidades, encontros que definem, interrompem, surpreendem, frustram, mas acima de tudo contam o tempo do futebol como um relógio, clássico a clássico, temporada a temporada. Marcam. Então passados dez anos do tricampeonato carioca nos anos 1980, a década sem título local para o lado tricolor terminou logo no centenário rubro-negro, o gol de Renato Gaúcho em 1995, querendo provar sua grandeza numa disputa particular pelo posto de Rei do Rio ao desafiar Túlio, o artilheiro do campeonato, e Romário, recém-eleito o melhor jogador do planeta. Bancou e o fez, os pés com casca de futevôlei, o Maracanã num deboche de praia para um gol de barriga.
 
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O jogo nunca perdeu seu encanto particular, nem sua capacidade de pairar numa memória própria ao longo dos anos. É clichê, mas pergunta para um porteiro de CT: é, sim, uma história à parte, no detalhe do bom dia e do boa tarde, e os corredores dos clubes não nos deixam mentir, das crônicas de jornal até hoje, no Instagram. Pode ser líder contra lanterna, prateleiras de craques versus elenco em frangalhos, não importa. É diferente e pontua a campanha margeando a tabela de classificação.

Nelson Rodrigues escreveu que, diante de tanto ressentimento ainda fruto da dissidência no Fluminense que motivou a criação do futebol do Flamengo, eles são como os irmãos Karamázov do futebol brasileiro. E briga de irmão é aquele poço de traumas, chantagens, revides e pequenas vitórias numa disputa que parece jamais ter fim. Só eles sabem o doce sabor de ver o outro nas cordas, a dor alheia pedaço por pedaço, o gosto amargo de um revés desprevenido.



 

Gabigol lamenta chance perdida no Fla-Flu da ida (Foto: Iconsport)

 
 

Fluminense enfim fez frente ao Flamengo 

 
Em 2019, o Fla abriu vantagem. Não necessariamente nos encontros, mas, sem objeções, em tamanho e projeção. No Brasileirão daquele ano, o saudoso time de Jorge Jesus bateu campeão com mais pontos (90) que a soma de Fluminense (46) e Botafogo (43), enquanto o Vasco pagava outros pecados na Série B. Nunca foi tão cristalina a diferença de nível entre os times do Rio. Parecia inabalável a ideia de que a sala de troféus da Gávea seria renovada várias vezes ao ano, sem que os vizinhos pudessem ameaçar tal hegemonia. Secar parecia um sacrifício, e a cada domingo, um novo totó.

Mas agora, pela primeira vez desde esse desnível, o Fluminense foi buscar a possibilidade de fazer uma temporada com resultados acima do seu antagonista. Ganhou o Estadual com uma autoridade histórica, um 4 a 1 raríssimo, de enquadrar frame a frame. Na sequência, faz uma campanha que o credencia a ir longe na Libertadores e ainda começou melhor o Brasileiro, apesar da derrapada recente. 

Tudo isso com um contraste digno de irmãos que se projetam diferentes, ainda que possam carregar semelhanças. O Fluminense joga à imagem de seu técnico, um obcecado por fazer seus jogadores irem a campo com coragem e protagonismo, fã do controle que se dá por um viés técnico, de posse e aproximação, de encontro ao redor da bola e principalmente de um elevado nível de bem-estar coletivo diante da ideia. O onze levado ao campo é assinado por Fernando Diniz, com firma reconhecia em cartório e registro na Biblioteca Nacional.



 

Fernando Diniz imprime estilo autoral no Flu (Foto: Iconsport)



Já o Flamengo, com a mesma velocidade em que empilha jogadores de nome e sucesso recente em grandes clubes (inclusive europeus), acumula frustrações com treinadores. Vai caindo um atrás do outro nos últimos três anos, questionados por algo chamado de estilo enquanto vão assinalando todos os itens imaginados pelo debate – estrangeiro, brasileiro, novato, velho de guerra, mais na dele, mais paizão, com dificuldade para ganhar, ganhando tudo, mais preso ao esquema, mais adaptável ao elenco, tudo, tudo que você pensar sobre o ofício de técnico de futebol passou pelo Flamengo recente, e meio que eles viraram uma coisa só, um grande período tratado como insuficiente. Um time cheio de ídolos e estrelas que reflete uma constante nostalgia, a eterna impressão de que logo vai sair uma tabela de Arrasca para Everton, e para Bruno, e para Gabi, e um gol de fazer sorrir o Rio de Janeiro inteiro. Jorge Sampaoli é o cara da vez, ainda em vias de romper (ou não) o fardo da dúvida. 
 

Flamengo pode reafirmar a escala de grandeza? 


O encontro desta quinta-feira pela Copa do Brasil, onde só um dos irmãos seguirá à próxima fase, terá inevitavelmente esse impacto. Pode assegurar esse Fluminense como o que conseguiu de fato ocupar aquele latifúndio que parecia separar os dois clubes anos atrás, um no topo, outro no meio do caminho, e fazê-lo pela identidade de seu time. E vale para o Flamengo reafirmar a escala de grandeza sobre seus principais adversários regionais, dando sobrevida a um elenco que nos últimos anos vem chegando em todas e que se encontra em xeque, é verdade, mas ninguém é maluco de negar que pode alcançar uma atuação com lampejos dos bons tempos.
 
Dugout


O que fica para quem daqui se ajeita no sofá para assistir ao Clássico das Multidões, inédito no principal mata-mata nacional, é que o jogo mais charmoso do futebol brasileiro ressurgiu com sua grandeza que remete aos melhores tempos, carregando a dissemelhança que marca a personalidade de autênticos rivais. O jogo da semana é o Fla-Flu, ponto. Com as chances naquele indeciso 50-50 que estampa as noites inesquecíveis.




Sigmund Freud, que criou a psicanálise num mundo ainda sem Maracanã, classificou Os Irmãos Karamazov como o maior romance já escrito. Na história clássica de Dostoiévski, outro que nem chegou a pegar uma Copa do Mundo no rádio, cabem nos três filhos a complexidade do comportamento humano – um segue um velho monge com seu lado místico; o outro é um intelectual, racional que só ele; e o terceiro é pura emoção, um apaixonado. Nelson Rodrigues era exagerado, dizem que mal enxergava o jogo lá de cima, mas para analogias da bola, olha, aí a visão esteve sempre em dia. 
 

Agradeço à lembrança da nova equipe do Superesportes pelo convite a escrever essa e as próximas colunas sobre o futebol brasileiro. Que venham boas conversas por aqui, com o carinho, o respeito e a leveza que o jogo merece.