No início deste mês, o presidente da Uefa, o esloveno Aleksander Ceferin, havia dito estar preocupado com a perspectiva de uma mesma entidade, pessoa ou empresa ser dona de diferentes times de futebol. Poucos dias depois, o presidente do Qatar Islamic Bank, confirmou ter feito uma oferta para comprar o Manchester United (ING), um dos clubes mais famosos do planeta.
O sheikh Jassim Bin Hamad Al Thani tentou esclarecer que a proposta de 5 bilhões de euros (R$ 27,5 bilhões na cotação atual) era sua, como pessoa física, e não teria nada a ver com a família real do Qatar, da qual ele faz parte. Também seria independente do Qatar Investiment Authority, o fundo soberano do país, controlado pela monarquia e com patrimônio avaliado em US$ 450 bilhões (R$ 2,35 trilhões).
O Paris Saint-Germain (FRA) pertence a Qatar Sports Investment, uma empresa subsidiária do fundo soberano. Isso pode fazer com que, na prática, o estado qatariano seja proprietário de duas das equipes mais poderosas da Europa. Mesmo que, oficialmente, isso possa ser contestado.
"É um terreno cinzento. O regulamento da Uefa é de 1998 e fala que dois clubes não podem ser controlados pela mesma pessoa ou empresa. Mas qual é a definição de controle? Você pode ter 5% ou 10%, sem cargo de gerência, e interferir em mais de um clube. Claro que [a legislação] tem brechas", define o advogado Marcos Motta, especialista direito desportivo internacional.
É um problema que pode ser trazido para o Brasil com a lei da SAF, que autoriza as agremiações a se tornarem sociedades anônimas. A Lei Pelé, assim como a Uefa, proíbe que a mesma empresa/indivíduo seja dono de mais um time na mesma competição. Mas as normas precisam ser atualizadas para evitar casos dúbios.
"Deve haver discussão sobre teste de proprietários [se a pessoa interessada tem condições de ser dona], integridade da competição, sistema de licenciamento [as autorizações que o interessado precisa obter para adquirir uma equipe], fair play financeiro. Não vejo ninguém discutindo assuntos como esses na liga no Brasil. Quando você compra um clube, há impacto direto no mercado. Pode acontecer de acertar balanço de um time vendendo ou comprando jogador de outro do mesmo proprietário", completa Motta.
No mês passado, o Botafogo acertou a ida do atacante Jeffinho para o Lyon. Seriam 5 milhões de euros (R$ 27,4 milhões) por um empréstimo de cinco meses com opção de compra. Questionou-se na França o valor alto por uma negociação de tão curta duração. A torcida do alvinegro brasileiro protestou nas redes sociais. As duas agremiações pertencem ao empresário norte-americano John Textor.
Diante da repercussão, o Lyon anunciou logo depois a compra de Jeffinho por 10 milhões de euros (R$ 54,9 milhões).
Transações entre clubes administrados pela mesma empresa não são inéditas. O Zaragoza (ESP) comprou o lateral Cafu em 1995 e o São Paulo colocou uma cláusula que proibia o jogador de ser revendido para o Palmeiras, que à época tinha a cogestão da Parmalat. Cinco meses depois, o lateral foi adquirido pela multinacional de laticínios e colocado no Juventude, onde também cuidava do futebol.
Cafu disputou dois jogos no Rio Grande do Sul, ficou cerca de um mês e foi para o Palmeiras.
Brasileiros que atuam na Europa
A preocupação com o MCO (Multiple Club Ownership, ou Propriedade de Múltiplos Clubes em inglês) é real porque especialistas de mercado perceberam um movimento nesta direção de bilionários interessados em esporte.
A Uefa detectou no ano passado que mais de 6500 jogadores ao redor do mundo estão registrados em equipes com proprietários que se encaixam no conceito de MCO.
A Eagle Football Holdings, de John Textor, além de Botafogo e Lyon, é dona da Molenbeek, da segunda divisão belga e tem 40% de participação no Crystal Palace, da elite inglesa.
A norte-americana 777 Partners, tem o Vasco, Genoa (ITA), Standard Liege (BEL), Red Star FC (FRA). Também possui participação acionária no Sevilla (ESP). Todos de primeira divisão em seus países.
O City Football Group, companhia que pertence à família real dos Emirados Árabes, é dona de oito clubes em oito países. Entre eles, o Bahia.
A participação das monarquias dos Emirados Árabes, Qatar e Arábia Saudita (dona do Newcastle) carrega também a denúncia de sportswashing. Trata-se do uso do dinheiro estatal de nações ricas em petróleo como arma de geopolítica e melhoria de imagem na comunidade internacional. São três países acusados de desrespeito aos direitos humanos e de discriminar a comunidade LGTBQA+ e mulheres.
Apesar das regras da própria Uefa, há precedentes de equipes ligadas à mesma empresa disputarem a Champions League. Algo que pode acontecer com Manchester United e PSG, caso compartilhem uma conexão qatariana.
"A Uefa abriu um precedente quando a Red Bull e seus respectivos times na Alemanha e Áustria disputaram a Champions League. Neste caso, após análise de documentação e depois de alguns compromissos firmados pela Red Bull de que não haveria nenhuma interferência na independência dos clubes, foi dado sinal verde a participação de ambos. Não há dúvida de que esse será o precedente a ser levantado pelo Qatar", analisa Eduardo Carlezzo, advogado especializado em direito desportivo.