O torcedor celeste que sofre com o momento não tem dúvida de que o abismo é fruto do caos que surgiu no âmbito extracampo. Há pouco mais de um ano, essa mesma diretoria e os jogadores comemoravam em São Paulo, depois de vitória por 2 a 1 sobre o Corinthians, o hexacampeonato da Copa do Brasil. A equipe iniciou a atual temporada com sonhos ainda mais ambiciosos, porém, sofreu uma reviravolta que a tirou dos trilhos. Mas como essa crise começou a abalar um time que podia ser considerado um dos mais fortes do Brasil?
A resposta pode estar na própria eleição de Wagner Pires de Sá como presidente para o triênio 2018-2020, com apoio do antecessor Gilvan de Pinho Tavares. O pleito ocorreu em ambiente pesado, com troca de farpas entre o presidente eleito e o candidato da oposição e derrotado, Sérgio Rodrigues. Ao assumir, Wagner nomeou como vice-presidente de futebol o ex-dirigente do Ipatinga Itair Machado, o que não foi bem digerido pelo grupo de Gilvan. A chapa vencedora imediatamente rompeu com o ex-presidente.
Wagner deu amplos poderes a Itair e ainda levou para o clube o comentarista esportivo Sérgio Nonato, sem qualquer experiência em gestão de futebol, para ocupar o recém-criado cargo de diretor-geral. Além disso, aumentou os gastos com a contratação de atletas com salários altos, casos do lateral-direito Edilson, do volante Bruno Silva e dos atacantes Fred e David. No campo, a administração, já com indícios de estrangulamento da receita, teve sucesso com o título da Copa do Brasil, garantindo premiação de mais de R$ 60 milhões – boa parte foi partilhada como bicho entre diretores, jogadores e funcionários.
Em 2019, os gastos novamente foram grandes. Apesar da venda do uruguaio De Arrascaeta para o Flamengo por R$ 58 milhões, a cúpula continuou a esbanjar, principalmente com os altos salários dos diretores (entre eles, Itair, R$ 180 mil, e Sergio Nonato, R$ 125 mil) e reforços caros, como Rodriguinho e Pedro Rocha. Em nenhum momento houve readequação financeira. Pelo contrário, o Cruzeiro antecipou cotas de TV e de patrocinadores para pagar salários.
O estopim para o início da crise foi a reportagem veiculada pelo programa Fantástico, da TV Globo, que acusava toda a diretoria de corrupção e falsificação de documentos. Investigados pela Polícia Civil, Wagner e Itair inicialmente não se afastaram do clube, o que provocou fúria na torcida. Conselheiros de oposição planejaram tirá-los da função, mas encontraram resistências. Se até então vinha bem em campo – conquistou o Mineiro e fez uma das melhores campanhas da fase inicial da Libertadores –, o time celeste passou a sofrer os efeitos da crise política e administrativa. Ao privilegiar as competições de mata-mata, o time de Mano Menezes deixou de lado o Brasileiro, ocupando as últimas posições. Com as eliminações na Libertadores (para o River Plate) e na Copa do Brasil (para o Internacional), o desgaste entre diretoria e torcida aumentou, atingindo também o grupo, que, com salários atrasados, não reagiu na Série A. Nesse cenário, Mano foi dispensado, Rogério Ceni foi contratado e demitido 46 dias depois, e Abel Braga assumiu num ambiente caótico.
CLIMA PESADO
Itair e Serginho deixaram o clube, e o ex-presidente Zezé Perrella assumiu o departamento de futebol. No entanto, o clima continuou pesado por causa da crise financeira (a dívida chega a R$ 700 milhões). Lideranças como Thiago Neves e Fred ganharam espaço com Abel, mas o desempenho da equipe não melhorou. O ataque caiu de rendimento e a defesa se sustentava aos trancos e barrancos nas grandes defesas do goleiro Fábio. A derrota para o CSA por 1 a 0, em pleno Mineirão, foi a gota d'água para que Perrella demitisse Abel e apostasse no retorno de Adilson Batista. Thiago Neves também foi afastado depois de ir a um show de pagode enquanto se tratava de lesão. Nada surtiu efeito.
O Cruzeiro chegou à última rodada com quatro derrotas consecutivas e sem conseguir responder. Na tarde deste domingo, mais do que nunca, vai precisar do apoio do torcedor e do empenho máximo dos atletas para evitar a maior tragédia de sua história.
Discursos da crise
“Foi um jogo de muitas emoções. Agora que o meu coração está um pouco mais tranquilo, mas queremos ainda mais títulos, como o da Libertadores e, é claro, o do Mundial” - Wagner Pires de Sá, após conquista do Campeonato Mineiro em cima do Atlético, no Independência
“A matéria que saiu no Fantástico, quem entende de futebol – e todos aqui entendem – sabe que aquilo ali não é nada. Todos os clubes pegam dinheiro emprestado e dão jogadores como garantia” - Itair Machado, em 27/5/19, se explicando sobre as denúncias de corrupção veiculadas pelo Fantástico
“Para ganhar essa luta, a união pelo Cruzeiro deveria ser maior que qualquer interesse pessoal. Em todas as esferas. E foi diante dessa crença que, inclusive, ofereci à diretoria não receber meus vencimentos até que o clube garantisse permanência na Série A, onde sempre pertenceu e sigo acreditando que permanecerá” - Rogério Ceni, em pronunciamento por meio das redes sociais, ao ser demitido pelo Cruzeiro
“Era um jogo diferente e a gente teve que se adaptar. Mudar três, quatro jogadores para uma decisão fora de casa é muita coisa em um time que já vem formado e joga junto há um ano. Improvisar jogadores é difícil, ainda mais jogador que não vem jogando” - Thiago Neves, ao criticar Rogério Ceni depois da eliminação na Copa do Brasil diante do Internacional
“Futebol reflete muito as coisas que estão acontecendo não só dentro de campo, mas fora também, principalmente porque você está vendo essas situações expostas, e o maior prejudicado é o nosso Cruzeiro. Torcedor fica preocupado. Muitas coisas são feitas nos bastidores, e o mais importante é todos unirem forças e pensar exclusivamente no Cruzeiro” - Fábio, se mostrando incomodado com a difícil situação política do clube
“Não acho que a direção do Cruzeiro tenha me derrubado. Acho que a saída é justa. No conjunto de 18 jogos vencer uma partida, não se pode continuar conduzindo um trabalho. Por isso tomei essa iniciativa. Gosto das pessoas com quem trabalhei nesse tempo todo” - Mano Menezes, ao ser demitido depois da derrota para o Internacional, pela Copa do Brasil
“Lamento de ter sido dois meses no cargo, de não ter conseguido aquilo de que eu era convicto. Tem um ambiente de jogadores excepcional. Culpa todos têm, mas eu me sinto mais responsável. Obrigado a todos, foi muito curto, gostaria que fosse mais longo, mas lamentavelmente esse é o mundo do futebol, e é assim que tem que ser” - Abel Braga, ao ser demitido pela diretoria depois da derrota para o CSA, no Mineirão
“Uma empresa que gasta mais do que recebe está fadada à bancarrota. O Cruzeiro está caminhando a passos largos para virar, com todo o respeito, um Vasco da Gama, uma Portuguesa e por aí vai. Porque está faltando responsabilidade” - Zezé Perrella, em entrevista à TV Alterosa, em outubro
“Jogamos em uma grande instituição, mas chega um momento em que as coisas não vão dando certo e chega a ansiedade. Muitos já viveram isso, muitos não. Temos que tirar forças” - Henrique, depois do jogo contra o Vasco (revés por 1 a 0)
“No lance que levei o cartão (amarelo), acredito que meu time foi pouco experiente. O Luciano tocou no meu rosto e tínhamos que jogar a bola para fora, para pressionar o árbitro a olhar o VAR. Fiquei puto com o meu time, não com o juiz. Meu time foi cabaço” - Edílson, ao criticar postura do time na derrota para o Grêmio por 2 a 0, na penúltima rodada do Brasileiro
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