A confirmação pela Fifa nesta quarta-feira (11/12) de que a Arábia Saudita sediará a Copa do Mundo de 2034 – apesar de o país enfrentar críticas sobre seu histórico de violação de direitos humanos e danos ambientais – é um dos passos mais controversos que o órgão dirigente do futebol já tomou.
No entanto, embora muitos críticos fiquem consternados com a decisão, poucos devem se surpreender, dada a influência que o investimento sem precedentes do reino saudita no esporte garantiu.
Vale lembrar, alguns dos principais jogadores do mundo atuam hoje na Arábia Saudita, como Neymar e Cristiano Ronaldo.
Então, o torneio mundial será usado para ajudar a transformar a reputação da Arábia Saudita? Pode ser um catalisador para reformas sociais? E o que isso nos diz sobre a Fifa e o futebol de maneira mais ampla?
Aqui, a BBC Sport examina as principais questões.
Uma coroação, e não uma competição
A confirmação oficial de que a Arábia Saudita sediará a Copa do Mundo foi feita em uma reunião "virtual" do Congresso da Fifa na tarde desta quarta-feira.
Mas isso parece ser apenas uma formalidade há mais de um ano.
Em outubro de 2023, ficou claro que a candidatura da Arábia Saudita não teria oposição depois que a Austrália — a única outra candidata potencial — decidiu não entrar na disputa, sugerindo que seria inútil fazê-lo após ser dado menos de um mês pela Fifa para apresentar sua candidatura.
A Fifa defendeu o processo acelerado, que muitos argumentam não ter sido transparente e responsável.
Mas os críticos acreditam que o caminho efetivamente se abriu para os sauditas quando a Fifa decretou que a Copa do Mundo de 2030 seria realizada em três continentes — Espanha e Portugal, na Europa, e o Marrocos, na África, são os coanfitriões, com os três primeiros jogos sendo na América do Sul, na Argentina, no Uruguai e no Paraguai.
Isso significa que, de acordo com sua política de rotação, apenas candidaturas da Ásia e da Oceania seriam aceitas para 2034.
Vale ressaltar que a Arábia Saudita e a Fifa, sob a presidência de Gianni Infantino, desenvolveram um relacionamento próximo.
O país sediou o Mundial de Clubes da Fifa em 2023, e o órgão dirigente tem um contrato lucrativo de patrocínio com a gigante petrolífera estatal Aramco.
Também houve grande especulação de que o Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita (PIF) poderia fazer um grande investimento na gigante do streaming DAZN, que concordou em transmitir a edição inaugural do projeto preferido de Infantino — uma Copa do Mundo de Clubes expandida no próximo verão no hemisfério norte.
O senso de inevitabilidade em torno da candidatura saudita foi ainda mais reforçado no mês passado, com a publicação tardia do relatório de avaliação da Fifa, redigido pelo vice-presidente de Infantino, o secretário-geral Mattias Grafstrom.
O relatório deu à candidatura uma pontuação média de 4,2 de 5, a mais alta já registrada.
Nenhuma coletiva de imprensa foi realizada para explicar essa avaliação elogiosa, nem o fato de que a candidatura foi considerada "risco médio" em relação aos direitos humanos e "risco baixo" em relação à proteção ambiental, o que gerou indignação entre os ativistas.
Enquanto isso, a Fifa pode argumentar que nomear os anfitriões por meio de candidaturas sem oposição é preferível ao passado, quando longas disputas entre vários países podiam ser vulneráveis a trocas de votos e tentativas de corrupção. E que, como um órgão global, tem o dever de levar seu evento principal a novos territórios.
Federação de futebol da Noruega protestou contra a candidatura da Arábia Saudita (Foto: PA)
O que os outros países disseram?
A federação de futebol da Noruega protestou contra a candidatura da Arábia Saudita, argumentando que o processo de escolha "vai de encontro às próprias reformas da Fifa para uma boa governança" e "desafia a confiança na Fifa".
A federação acrescentou que as diretrizes da Fifa não foram seguidas, "aumentando o risco de violações dos direitos humanos".
A federação da Alemanha, a DFB, disse que "levou a sério as críticas ao país candidato… [mas] nosso objetivo é trabalhar com a Fifa para melhorar a situação nos próximos anos".
Mas a maioria das análises críticas e fiscalização tem vindo de fora do esporte.
Em março, o jornal britânico The Guardian afirmou ter encontrado evidências de um alto número de mortes inexplicáveis de trabalhadores migrantes de Bangladesh na Arábia Saudita.
O país se defendeu alegando que suas regulamentações e padrões estavam sendo seguidos, mas a Fifa foi pressionada a garantir compromissos vinculativos para reformas antes de conceder a Copa do Mundo.
Em outubro, um relatório independente conduzido pela filial saudita de um grande escritório de advocacia — que foi submetido à Fifa como parte da inspeção da candidatura — foi condenado por grupos de direitos humanos por ignorar o abuso de trabalhadores migrantes.
No mês passado, a Anistia Internacional pediu que a Fifa interrompesse o processo de licitação "para evitar piorar uma situação já desesperadora", alertando que "os torcedores enfrentarão discriminação, moradores serão despejados à força, trabalhadores migrantes enfrentarão exploração e muitos morrerão" caso o torneio seja realizado na Arábia Saudita.
Também houve certa oposição à crescente influência da Arábia Saudita no futebol.
Em outubro, por exemplo, mais de 100 jogadoras de futebol profissional assinaram uma carta aberta pedindo à Fifa que abandonasse a Aramco como patrocinadora, chamando a situação de um "soco no estômago".
Mas outros temem que muitos jogadores relutem em se manifestar, caso isso prejudique uma transferência lucrativa para algum clube saudita.
Como será a Copa da Arábia Saudita?
Maquete do projeto para o estádio de Riad, capital saudita (Foto: FAYEZ NURELDINE/AFP via Getty Images)
A candidatura propõe 15 estádios (incluindo três em construção e oito onde o trabalho ainda não começou), distribuídos por cinco cidades-sede, incluindo uma (a futurista Neom) que ainda precisa ser construída.
O relatório de avaliação da Fifa destaca "uma variedade de estádios impressionantes que, quando concluídos ou reformados, poderão oferecer infraestrutura de última geração".
Também é quase certo que o torneio seja realizado no inverno do hemisfério norte.
No entanto, pode haver uma grande diferença em relação ao torneio no vizinho Catar, que aconteceu entre novembro e dezembro de 2022.
Observando que as temperaturas de verão "podem ultrapassar os 40°C", a Fifa mencionou haver "risco elevado em termos de ajuste de tempo para o evento", referindo-se à necessidade de lidar com "condições climáticas" e "eventos religiosos".
Isso tem levado à especulação de que o evento possa ocorrer a partir do início de janeiro para evitar um conflito com o ramadã, o mês sagrado para os muçulmanos.
A Premier League (campeonato inglês de futebol) e outras ligas europeias se oporiam a uma Copa do Mundo no inverno, de acordo com a agência de notícias PA.
A influência saudita no esporte
Para muitos, a ratificação de uma Copa do Mundo na Arábia Saudita é expressão máxima do poder que o país exerce atualmente sobre os esportes.
O reino investiu bilhões de dólares na realização de eventos desde 2021, quando o governante de fato do país, o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman, fez disso uma parte fundamental de sua estratégia "Visão 2030" para modernizar e diversificar a economia.
Desde então, o país sediou a Fórmula 1, as finais das copas da Espanha e da Itália, o Mundial de Clubes, e eventos de alto nível, como boxe, golfe, corridas de cavalos e tênis.
O Fundo de Investimento Público do país também lançou a série LIV de golfe, assumiu o controle de quatro clubes da Saudi Pro League (o campeonato saudita de futebol) e comprou o time inglês Newcastle United.
Enquanto isso, um relatório recente da organização dinamarquesa Play the Game revelou que a Arábia Saudita assinou mais de 900 acordos de patrocínio e fez dezenas de acordos formalizados com federações de futebol, numa ampliação de sua influência no cenário esportivo.
Mas sediar uma Copa do Mundo levará a revolução esportiva da Arábia Saudita a um nível totalmente diferente e, talvez, até abra o caminho para uma candidatura olímpica no futuro.
Torcedores sauditas num jogo contra o Paquistão, em junho (Foto: Getty Images)
É um sportswashing?
Muitos críticos veem a escolha como o maior ato de sportswashing na história da Fifa.
O termo em inglês se refere à prática de usar o esporte para melhorar ou reformular a imagem de um país, muitas vezes para desviar a atenção de questões controversas ou preocupações com os direitos humanos.
A Arábia Saudita enfrenta anos de críticas sobre temas como:
- violação aos direitos humanos;
- repressão contra as mulheres;
- a criminalização da homossexualidade;
- restrições à liberdade de expressão;
- o uso contínuo de pena de morte;
- o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018, na Turquia;
- prisão de ativistas por sua atuação online;
- o envolvimento do governo no sangrento conflito no vizinho Iêmen.
Embora os ativistas reconheçam que houve reformas importantes nos últimos anos, como no caso dos direitos das mulheres, também apontam que a repressão continua.
A Arábia Saudita executou o terceiro maior número de prisioneiros no mundo em 2023, e 300 pessoas já foram executadas este ano, um recorde baseado em dados oficiais.
Em 2024, Manahel al-Otaibi foi condenada a 11 anos de prisão depois de usar as redes sociais para pedir o fim das regras que exigem que as mulheres obtenham permissão de um parente masculino para casar ou viajar.
O grupo de defesa dos direitos humanos Reprieve disse que "este é um dos regimes autoritários mais brutais do mundo, gastando enormes somas de dinheiro para criar uma imagem falsa, desviando a atenção da repressão crescente e da violência estatal".
"Alguns dos executados ou que estão atualmente enfrentando a pena de morte são manifestantes ou não fizeram nada mais grave do que serem pegos com pequenas quantidades de maconha."
"Os torcedores que planejam viajar para a Arábia Saudita em 2034 devem estar cientes de que este é um país onde exercer as liberdades que tomamos como garantidas em sociedades democráticas pode levar à morte."
As autoridades sauditas insistem que sua candidatura visa diversificar a economia e aumentar o turismo, atuar como um catalisador para modernização e reformas, além de inspirar a população jovem a ser mais ativa.
No ano passado, o ministro dos Esportes do país, príncipe Abdulaziz bin Turki Al Faisal, defendeu o direito do país de sediar o torneio, afirmando que as alegações de sportswashing eram "superficiais".
Ele acrescentou: "Hospedamos mais de 85 eventos globais e cumprimos com o mais alto nível. Queremos atrair o mundo através do esporte... Qualquer país tem espaço para melhorar, ninguém é perfeito. Reconhecemos isso e esses eventos nos ajudam a reformar para um futuro melhor para todos."
As mulheres na Arábia Saudita só foram autorizadas a entrar nos estádios para assistir aos jogos em 2018, e desde então foi criada uma liga profissional de futebol feminino e uma seleção nacional feminina, com mais de 70 mil garotas jogando regularmente no país.
No entanto, no ano passado, Jake Daniels, o único jogador de futebol profissional masculino abertamente gay do Reino Unido, disse à BBC que "não se sentiria seguro" em uma Copa do Mundo na Arábia Saudita.
O príncipe Abdulaziz disse à BBC que "todos são bem-vindos".
Presidente da Fifa, Gianni Infantino, tem boa relação com o regime saudita (Foto: PA)
A Copa 2034 pode levar a mudanças?
Muitos acreditam que, embora o Catar tenha oferecido uma Copa do Mundo segura e memorável, desfrutada por muitos fãs, os anos de controvérsia que ofuscaram o torneio (envolvendo direitos humanos, leis discriminatórias e a grande interrupção no calendário do futebol causada pela primeira Copa no inverno) podem agora se repetir.
Em 2010, a vitória surpresa do Catar na votação para decidir os anfitriões da Copa de 2022 pegou a liderança da Fifa de surpresa.
Em contraste, Infantino parece ter apoiado a ideia de uma Copa saudita. E, com a Fifa tendo adotado uma política de direitos humanos em 2017, pode haver ainda mais escrutínio sobre sua decisão — e qualquer evidência de que isso leve a impactos adversos para os trabalhadores.
Assim como no Catar, a infraestrutura da Copa da Arábia Saudita será amplamente construída por trabalhadores migrantes do Sul da Ásia, com mais de 13 milhões de estrangeiros vivendo no país.
A escala da construção necessária inevitavelmente gerou preocupações.
O próprio relatório da Fifa concluiu que "uma série de graves impactos nos direitos humanos realmente ocorreu no Catar de 2010 a 2022 para vários trabalhadores envolvidos com a Copa do Mundo. Isso incluiu mortes, ferimentos e doenças; salários não pagos por meses a fio; e dívidas significativas… Um argumento plausível pode ser dado de que a Fifa contribuiu para alguns desses impactos".
A cobertura de mídia que acompanhou a preparação para a Copa do Mundo do Catar pode ter levado a reformas trabalhistas, embora ativistas estejam céticos em relação à implementação.
No ano passado, o príncipe Abdulaziz assegurou que não haveria repetição dos problemas de direitos trabalhistas do Catar, dizendo: "Temos dez anos para trabalhar nisso, já começamos em muitos dos locais, então temos muito tempo para fazer isso da maneira certa".
No entanto, em seu relatório de avaliação da Arábia Saudita, a Fifa faz referência a "áreas em que são necessárias mais reformas legais e… uma aplicação efetiva, sem a qual o risco de condições de trabalho indecentes poderia ser elevado".
A Fifa elogia o "compromisso do governo saudita em respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos reconhecidos internacionalmente em conexão com a competição, incluindo nas áreas de segurança, direitos trabalhistas, direitos das crianças, igualdade de gênero e não discriminação, assim como liberdade de expressão (incluindo liberdade de imprensa)".
Mas, com relação à diversidade e à antidiscriminação, o relatório também "nota lacunas e reservas na implementação dos padrões internacionais". Apesar disso, a Fifa vê "um bom potencial de que o torneio poderia servir como um catalisador para algumas das reformas em andamento e futuras e contribuir para resultados positivos em direitos humanos".
A Anistia Internacional afirmou que a avaliação foi "uma lavagem de imagem impressionante do histórico atroz de direitos humanos do país. Reformas fundamentais de direitos humanos são urgentemente necessárias na Arábia Saudita, ou a Copa de 2034 será inevitavelmente manchada por exploração, discriminação e repressão".
Um campo de petróleo pertencente à Aramco na Arábia Saudita (Foto: Reuters)
E o meio ambiente?
Os ativistas há muito tempo acusam o maior exportador de petróleo do mundo de contribuir para as mudanças climáticas por meio de sua indústria de combustíveis fósseis e do bloqueio de ações climáticas.
Mas agora eles também expressaram grandes preocupações sobre o impacto de sediar um torneio com 48 equipes, apontando para a energia necessária para sistemas de resfriamento, dessalinização de água e projetos de infraestrutura de alto impacto em carbono.
O governo saudita afirma que está diversificando sua economia para longe dos combustíveis fósseis e tentando reduzir as emissões, e rejeitou as críticas de que está usando o esporte para desviar a atenção de seu histórico em sustentabilidade.
O relatório de avaliação da Copa do Mundo da Fifa afirmou: "Embora a dimensão das obras tenha um impacto ambiental relevante, a proposta oferece uma boa base para implementar medidas de mitigação para lidar com alguns dos desafios ambientais."
A credibilidade da Fifa nessa área foi severamente prejudicada no ano passado, quando um regulador suíço declarou que a federação fez declarações falsas sobre o impacto ambiental da Copa do Catar 2022, ao afirmar que seria a primeira Copa do Mundo "totalmente neutra em carbono".
Além disso, enquanto o Catar construiu sete novos estádios, a Arábia Saudita está construindo 11 e reformando mais quatro. Foram realizados 64 jogos no Catar, mas a Copa do Mundo de 2034 na Arábia Saudita teria 104, o que pode resultar em um impacto ambiental ainda maior.
O que a decisão diz sobre o esporte?
Uma Copa do Mundo na Arábia Saudita reforça a extraordinária mudança de poder esportivo em direção ao Oriente Médio.
Até recentemente, a ideia de que o pequeno Catar e a vizinha Arábia Saudita sediariam Copas do Mundo no espaço de apenas 12 anos teria sido inconcebível para muitos. Mas, dada a riqueza desses países e o desejo das entidades esportivas por crescimento financeiro e novos mercados, isso acontecerá.
A Arábia Saudita pode destacar que não será o único anfitrião controverso de um megaevento esportivo nos últimos anos.
Nas duas últimas décadas, a Rússia sediou tanto a Copa do Mundo quanto as Olimpíadas (de Inverno, em Sochi). A China também sediou tanto as Olimpíadas de Verão quanto as de Inverno.
Relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo também são ilegais no Marrocos, coanfitrião da Copa 2030, assim como no Catar. Além disso, ativistas ambientais expressaram descontentamento com a realização da Copa do Mundo de 2030 em três continentes.
No entanto, outros temem que os aplausos que a candidatura saudita recebeu nesta quarta-feira representem uma derrota devastadora para o compromisso do esporte com os direitos humanos e a sustentabilidade.
As autoridades sauditas e a Fifa terão a próxima década para tentar convencer os céticos de que o país pode ser um anfitrião adequado, e de que o principal evento do esporte mundial não está manchado.