Se a cabala, uma palavra tão querida ao torcedor argentino, existe mesmo no futebol, a Argentina não será campeã do mundo. Esta reza que a seleção que chega bem e com moral à Copa não a vence.
Didier Deschamps era questionado na França em 2018 e era o volante de uma equipe que parecia não ter força ofensiva em 1998. A Espanha lutava contra a fama de nunca chegar em 2010. O Brasil se classificou com muito sofrimento em 2002 e, em 1994, Carlos Alberto Parreira passou as eliminatórias a ouvir gritos de "Telê Santana" vindos das arquibancadas.
A Argentina era tão desacreditada em 1986 que nenhuma emissora de TV do país se deu ao trabalho de mandar narradores e comentaristas ao México, pela certeza que a seleção faria as três partidas da fase de grupo e voltaria para casa.
A albiceleste sempre pode ser apontada como uma das favoritas pela camisa, tradição e por ter Lionel Messi. Mas neste ano, no Qatar, isso soa verdade. Campeã da Copa América de 2021 ao derrotar a seleção brasileira no Maracanã, a equipe de Lionel Scaloni acumula invencibilidade de 35 jogos.
A última derrota foi contra o mesmo Brasil, em 2019, na semifinal da Copa América. Uma partida ímpar, em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) deu quase uma volta olímpica no intervalo. O time comandado por Tite fez 2 a 0 de forma polêmica e Messi depois diria que o torneio estava arranjado para ser vencido pelos donos da casa.
Argentina também derrotou a Itália por 3 a 0 na primeira finalíssima Uefa-Conmebol, em 2022, e o que mais chamou a atenção nem foi o placar mas o futebol. Especialmente no segundo tempo, foi um passeio.
Scaloni parece ter encontrado um goleiro mais confiável do que Armani (Dibu Martínez), zagueiros que vão a campo sem qualquer receio em parar o adversário por bem ou por mal (Cuti Romero e Lisandro Martínez), Ángel Di María em boa fase, um atacante mortal em Lautaro Martínez e Lionel Messi feliz.
"É meu último Mundial. Seguramente, é. Sinto-me bem fisicamente, fiz uma pré-temporada muito boa neste ano que não pude fazer no ano anterior. Isso foi fundamental para começar de outra maneira e estar mentalidade de muita ilusão [com a Copa]", disse o camisa 10, em entrevista à ESPN Argentina.
É um favoritismo que só pode ser igualado pela campeã do mundo França e pelo Brasil. Isso é raro para a Argentina e para Lionel Messi no torneio. Apenas em 2006, quando ainda era um garoto de 19 anos e nem era titular, a seleção chegou com tanto moral.
A regra no país tem sido a desconfiança. Em 2010, havia Maradona no comando, mas a equipe quase ficou fora da Copa na África do Sul. A imagem daquelas eliminatórias foi a do técnico Maradona se jogando de peito no gramado do Monumental de Nuñez, sob tempestade, para comemorar o gol salvador de Martín Palermo nos acréscimos contra o Peru.
Quatro anos mais tarde, a Argentina foi à final contra a Alemanha, mas a seleção ganhou confiança durante o torneio. Havia tamanho receio que, após a estreia diante da Bósnia, os jogadores pediram ao treinador Alejandro Sabella mudar o esquema 5-3-2. Ele atendeu.
"Em 2014 tínhamos um grupo espetacular. Vínhamos de brigas depois da Copa América, eliminatórias ruins. Ganhamos [o primeiro jogo] e a partir dali não perdemos mais. Fomos nos fortalecendo e não paramos até a final que merecíamos ganhar", analisa Messi, sobre a queda por 1 a 0 para a Alemanha.
Qualquer problema que tenha acontecido antes do Mundial no Brasil não se compara ao ciclo para o torneio de 2018, na Rússia. A Argentina perdeu duas finais de Copa América, teve três treinadores nas eliminatórias e se esfacelou a partir da estreia, contra a Islândia. Sampaoli perdeu tanto o grupo que chegou a consultar Messi sobre uma substituição que faria diante da Nigéria.
Isso ficou no passado porque os jogadores estão aproveitando como nunca uma seleção argentina campeã, harmoniosa e em grande fase. A cereja do bolo é a Copa do Mundo.